ACÓRDÃO Nº 8 /2010 - 1ª Secção/PL
RECURSO ORDINÁRIO Nº 32/2009
(Processo nº 1467/2009)
I - RELATÓRIO
a) A Câmara Municipal de Alcochete, inconformada com o teor do Acórdão n.º 165/09, de 17.11.2009, que recusou o visto ao contrato de empreitada celebrado entre aquela entidade e a empresa "Construções M. Marques da Silva, Lda.", com o valor de € 380 654,93, acrescido de IVA, e tendo por objecto a construção das instalações da extensão do Centro de Saúde do Samouco, veio do mesmo interpor recurso jurisdicional, concluindo como segue:
(1ª) Por lapso - que se lamenta, mas corresponde à mais pura verdade -, o recorrente não teve em consideração, na elaboração do programa de concurso que instruiu o procedimento pré-contratual objecto dos autos, o teor do douto Acórdão n.º 64/2006, de 21 de Fevereiro;
(2ª) Em qualquer caso, e admitindo-se que o Tribunal de Contas possa ser sensível a uma reapreciação da sua posição sobre a matéria objecto dos presentes autos, entende o recorrente que não incorreu em qualquer ilegalidade por incumprimento das normas constantes nos números 1 e 2, art.º 31.º, do Decreto-lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro;
(3ª) Por outro lado, ainda que, sem conceder e por hipótese, se verificasse qualquer ilegalidade, como se sustenta no douto Acórdão recorrido, certo é que a mesma não alteraria o resultado financeiro do contrato - razão pela qual não se mostra, no caso, justificada a recusa do visto de acordo com o disposto no art.º 44.º, n.º 3, alínea c), do Decreto-Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto;
(4ª) Por último, ainda que, sem conceder e por hipótese, procedesse a invocada ilegalidade e esta alterasse o resultado financeiro, é certo que, como referido, o recorrente não teve em consideração, na elaboração do programa de concurso que instruiu o procedimento pré-contratual objecto dos autos, o teor do douto Acórdão n.º 64/2006 - pelo que estarão verificados os pressupostos para, de acordo com o estatuído no art.º 44.º, n.º4, da Lei n.º 98/97 e segundo a jurisprudência do Tribunal de Contas, ser concedido o visto ao presente contrato, ainda que com recomendação no sentido de o recorrente evitar, no futuro, a ilegalidade referenciada.
Assim, e segundo a recorrente, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser concedido o visto ao contrato dos autos, julgando-se a respectiva conformidade nos termos do art.º 44.º, n.º s 1 e 2, da Lei n.º 98/97, ou, caso assim não se entenda, ser ainda concedido o visto ao mesmo contrato nos termos do citado art.º 44.º, n.º 4, desta mesma lei.
b) Aberta vista ao Ministério Público, o ilustre Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela improcedência do recurso.
c) Foram colhidos os vistos legais.
II - FUNDAMENTAÇÃO
Ao longo do acórdão recorrido, também objecto do presente recurso, considerou-se estabelecida, com relevância para a análise em curso, a factualidade inserta no introito deste Acórdão e ainda a seguinte:
a) O contrato em apreço, concluído em 9 de Julho de 2009, foi precedido da realização de concurso público que, que por seu turno, foi autorizado por deliberação tomada em 12.11.2008 pela Câmara Municipal de Alcochete e aberto por anúncio publicado em D.R. II Série, de 28.11.2008, e nos jornais Público e Jornal do Montijo;
b) O preços-base do concurso foi de € 384 000,00 (trezentos e oitenta e quatro mil euros);
c) A consignação da obra ocorreu em 13.7.2009;
d) O critério da adjudicação, ainda de acordo com o Programa do Concurso, é o da proposta economicamente mais vantajosa para a entidade adjudicante;
e) No ponto 8.1 e) do anúncio de concurso e no artigo 9.º, n.º 1, alínea e), do programa do procedimento, estabeleceu-se que seriam admitidos a concurso os concorrentes possuidores do certificado de empreiteiro de obras públicas com a classificação de Empreiteiro Geral ou Construtor Geral de Edifícios de Construção Tradicional, em classe que cobrisse o valor da proposta;
f) Ainda no ponto 8.2 do anúncio do concurso e no art.º 9.º, n.º 2, do Programa do Procedimento, refere-se que:
(...)
"A classificação em empreiteiro geral ou construtor geral habilita o seu titular a subcontratar a execução de trabalhos enquadráveis nas subcategorias necessárias à concretização da obra, sendo responsável pela sua coordenação global, nos termos do n.º 1 do art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, podendo as habilitações mínimas necessárias à realização da presente empreitada consubstanciar-se nas seguintes, não obstante a dispensa da exigência de verificação das mesmas em sede de concurso (vide n.º 2 do art.º31.º do D.L. n.º 12/2004) sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e b) do n.º1 do art.º 12.º do supramencionado diploma legal: as 1.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ª, 7.ª, 8.ª e 9.ª subcategorias da 1.ª categoria; a 9.ª subcategoria da 2.ª categoria, as 1.ª, 7.ª e 8.ª subcategorias da 4.ª categoria e a 1.ª subcategoria da 5.ª categoria;"
g) Tendo um dos concorrentes questionado a entidade adjudicante sobre se seria suficiente a detenção da categoria de empreiteiro geral ou construtor geral de edifícios de construção tradicional, ou se, para além dessa, se impunha a posse de todas as subcategorias mencionadas no art.º 9.º, n.º 2, de igual programa, a autarquia esclareceu o seguinte:
(...)
"O n.º3 da al. b) do art. 11.º do Programa do Procedimento reporta-se à verificação da conformidade dos preços apresentados pelos concorrentes com a classe das habilitações adequadas à execução da obra a realizar, sendo que, de acordo com alínea e), n.º 1, do artigo 9.º, o adjudicatário deverá apresentar, entre outros documentos, os alvarás ou títulos de registo emitidos pelo Instituto da Construção e do Imobiliário, IP, contendo as habilitações adequadas e necessárias à execução da obra a realizar, que, no presente caso, se traduzem na classificação em Empreiteiro Geral ou Construtor Geral de Edifícios de Construção Tradicional, a qual tem de ser de classe que cubra o valor da sua proposta (...).
(...) os preços parciais, no presente caso, concordam com o preço total da proposta apresentada pelos concorrentes, pelo que o elemento em questão deverá ser apresentado de forma condizente; sem prejuízo de, caso o adjudicatário, detentor da classificação em Empreiteiro Geral ou Construtor Geral de Edifícios de Construção Tradicional em classe que cubra o valor global da sua proposta, pretenda subcontratar qualquer dos trabalhos elencados no n.º 2 do art.º 9.º do programa de Procedimento, deverá, na Habilitação (e não na Proposta) exibir todos os documentos exigidos pelo artigo 9.º do supramencionado programa.";
h) O Acórdão n.º 64/2006-21 FEV - 1.ª S/SS, exarado no processo n.º 2374/2005, proferido e notificado à autarquia em Fevereiro de 2006, declarou que, no caso então em análise de um concurso público para adjudicação de uma empreitada, a exigência pelo Município de Alcochete "da posse de alvará de empreiteiro geral, com exclusão da situação prevista no n.º 1 do art.º31.º do Decreto-Lei 12/04, de 9 de Janeiro", era ilegal, susceptível de restringir o universo dos potenciais concorrentes e, consequentemente, de alterar o resultado financeiro do contrato.
Apesar disso, e considerando a inexistência de recomendação prévia sobre idêntica matéria, o Tribunal, abrigando-se ao disposto no art.º 44.º, n.º 4, da Lei n.º 98/97, visou aquele contrato, embora recomendando a não reiteração de idêntica prática.
III - O DIREITO
Analisado o acórdão sob recurso, logo se constata que a recusa do visto ao contrato em apreço se fundou na violação do disposto no art.º 31.º, n.ºs 1 e 2, do Dec. Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, pois, conforme aí se expressa, a exigência apenas da habilitação prevista no n.º 2, daquela norma (empreiteiro geral ou construtor geral de Edifícios de Construção Tradicional), obviou a que um empreiteiro detentor de alvará numa única subcategoria correspondente ao tipo de trabalhos mais expressivo (em classe correspondente ao valor global da proposta) pudesse candidatar-se à adjudicação e, mais previamente, opor-se ao correspondente concurso.
Ou seja, e ainda segundo o acórdão recorrido, formularam-se exigências de habilitações técnicas superiores às legalmente estabelecidas.
O teor de tal decisão mostra-se impugnado ao longo das alegações de recurso [matéria que, saliente-se, não se mostra sintetizada em conclusões extraídas a final], e onde, básica e essencialmente, a recorrente persiste em entender que as habilitações técnicas exigidas no presente concurso não reduz o universo de potenciais candidatos, mas, ao invés, contribui para a respectiva ampliação. Logo, e ainda segundo o entendimento da recorrente, não se mostra violado o disposto no art.º 31.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro.
Conhecido o conteúdo do acórdão sob recurso e o argumentário inserto nas alegações de recurso interposto pelo município de Alcochete, urge aquilatar da procedência ou não deste último.
1. O art.º 31.º, n.ºs 1 e 2, do Dec. Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, sob a epígrafe "Exigibilidade e Verificação de Habilitações", dispõe o seguinte:
1. Nos concursos de obras públicas e no licenciamento municipal, deve ser exigida uma única subcategoria em classe que cubra o valor da obra, a qual deve respeitar ao tipo de trabalhos mais expressivo, sem prejuízo da eventual exigência de outras subcategorias relativas aos restantes trabalhos a executar e nas classes correspondentes.
2. A habilitação de empreiteiro geral ou construtor geral, desde que adequada à obra em causa e em classe que cubra o seu valor global, dispensa a exigência a que se refere o número anterior.
A melhor interpretação das normas ora transcritas, aliás, na esteira de abundante e uniforme jurisprudência (1) deste Tribunal, impõe, como bom entendimento, o seguinte:
§ Caso o dono da obra exija apenas os requisitos indicados no n.º 1, do mencionado art.º 31.º, não violará alguma normação referente às habilitações exigidas a empreiteiros;
§ Exigindo, tão-só, as habilitações técnicas indicadas no n.º 2, do art.º 31.º, violará o disposto no n.º 1, desta mesma norma (art.º 31.º);
§ Prevendo-se no programa de concurso a possibilidade de os empreiteiros com a habilitação mencionada no n.º 1, do art.º 31.º e bem assim os empreiteiros possuidores da habilitação referida no n.º 2, de igual norma, poderem concorrer, não ocorrerá a violação de algum dispositivo legal regulador das habilitações exigidas aos empreiteiros;
§ E, por último, caso o dono da obra, em procedimento próprio, exigir mais do que uma única subcategoria em classe que cubra o valor global da obra, ou, de modo cumulativo, exigir ainda os pressupostos previstos nos n.ºs 1 e 2, da citada norma, violará o n.º 1, desta.
Eis, em resumo, o sentido extraído da literalidade da norma (art.º 31.º) acima transcrita e que, adiante, influenciará, necessariamente, a componente dispositiva do presente acórdão.
2. Ainda na senda da sustentação da bondade da habilitação técnica exigida, a recorrente advoga a vigência plena do ponto 6.2, da Portaria n.º 104/2001, que estabelece e aprova o programa de concurso tipo, pese embora a entrada em vigor do Dec. Lei n.º 12/2004, de 9/1, e bem assim do Dec. Lei n.º 18/2008, de 29/1.
A propósito, importa reter que o Dec. Lei n.º 12/2004 revoga o Dec. Lei n.º 61/99, de 2/3, substituindo-o.
Por outro lado, e como bem se escreve no acórdão recorrido, o teor do ponto 6.2 do programa de concurso tipo [aqui se prevê que a exigência de uma única subcategoria se aplique quando o dono da obra não possa exigir a habilitação de empreiteiro geral, ou, podendo, entenda não o fazer] aprovado pela Portaria n.º 104/2001, é apenas compaginável com o teor da norma contida no art.º 28.º, n.º 3 do referido Dec. Lei n.º 61/99, que facultava ao dono da obra a opção pela exigência da classificação de empreiteiro geral, sempre que uma obra envolvesse, de modo principal, a execução de trabalhos enquadráveis nas subcategorias determinadoras de tal classificação.
Contudo, e repetindo-nos, o mencionado regime [constante do Dec. Lei n.º 61/99] foi objecto de revogação mediante o Dec. Lei n.º 12/2004, de 9/1, que, no seu art.º 31.º, n.º 1, passou a exigir uma única subcategoria em classe que cubra o valor global da obra, subtraindo ao dono da obra a possibilidade de optar em tal matéria.
Neste contexto, mostra-se claro que o Dec. Lei n.º 12/2004, mediante o seu art.º 31.º, alterou e revogou, de forma implícita ou tácita, a normação contida no ponto 6.2 do programa de concurso tipo aprovado pela Portaria n.º 104/2001. E, decorrentemente, só a disciplina contida no art.º 31.º, n.ºs 1 e 2, do citado Dec. Lei n.º 12/2004, é aplicável neste domínio [habilitações técnicas], salientando-se ainda a circunstância do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Dec. Lei n.º 18/2008, não ter interferido em tal regime.
A orientação exposta não é prejudicada pela vigência da Portaria n.º 104/2001, a qual se mantêm aplicável em vertente não regulada pelo Dec. Lei n.º 12/2004, diploma legal que, sublinhe-se, é hierarquicamente superior àquela e que, em caso de concorrência disciplinadora, prevalecerá sobre a citada Portaria.
3. a) Da factualidade tida por fixada [vd. II. al.s a) a h)] resulta que a recorrente e também adjudicante estabeleceu no programa do procedimento que seriam admitidos a concurso os concorrentes possuidores do certificado de empreiteiro de obras públicas com a classificação de empreiteiro geral ou construtor geral de Edifícios de Construção Tradicional, em classe que cobrisse o valor global da proposta.
Tal exigência, ponderada à luz do entendimento vertido em III.1. [demonstrativo do sentido que conferimos à literalidade das normas contidas nos n.ºs 1 e 2, do art.º 31.º, do Dec. Lei n.º 12/2004] e ainda confrontada com a inaplicabilidade da Portaria n.º 134/2001 à matéria em causa [vd. orientação sustentada em III. 2.], infringe, notoriamente, o disposto no art.º 31.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, pois afasta a possibilidade deempreiteiros detentores das habilitações indicadas nesta última norma serem oponentes ao concurso.
b) A inobservância do disposto no art.º 31.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 12/2004, é susceptível de limitar a concorrência, a qual é traduzível na redução indevida do universo de potenciais oponentes ao concurso.
E tal circunstância, tendo aptidão para alterar o resultado financeiro do procedimento, enforma o fundamento de recurso de visto dos contratos submetidos a fiscalização prévia do Tribunal de Contas vd. [art.º 44.º, n.º 3, al. c), da Lei n.º 98/97, de 26/8].
Acresce que, no âmbito do Acórdão n.º 64/2006, de 21.2 (1.ª S/SS), o município de Alcochete já havia sido objecto de uma recomendação tendente a dar bom cumprimento às normas contidas no art.º 31.º, do Dec. Lei n.º 12/2004, orientação que aquela entidade persiste em desrespeitar, invocando discordância técnica.
Mantêm-se, pois, os pressupostos da recusa do visto a que se refere o art.º 44.º, n.º 3, al. c), da Lei n.º 98/97, de 26/8.
IV - DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 1.ª Secção em negar provimento ao recurso, mantendo, na íntegra, o acórdão recorrido.
Emolumentos legais.
Registe e notifique.
Lisboa, 20 de Abril de 2010
Os Juízes Conselheiros, - (Alberto Fernandes Brás - Relator) - (Manuel Mota Botelho) - (António Augusto dos Santos Carvalho)
Fui presente - (Procurador-Geral Adjunto) - (Jorge Leal)
(1) Acd. N.ºs 25/2009, de 29/06, 1.ª Secção/PL, 33/09-14/07 - 1.ª Secção /PL e n.º 2/2010, de 17/02, 1.ª Secção/PL, entre outros).