ACÓRDÃO Nº 27/2011 - 14/04/2011 - 1ª SECÇÃO/SS
PROCESSO Nº 287/2011 - 1ª SECÇÃO
I - OS FACTOS
1. O Hospital de S. João, E.P.E. (doravante designado por Hospital) remeteu a este Tribunal, para fiscalização prévia, o contrato de empreitada de "Fornecimento e Montagem de Subestação de Energia Eléctrica de Média e Baixa Tensão no Hospital de S. João, EPE", celebrado entre aquele hospital e o consórcio "EDP Serviços - Sistemas para a Qualidade e Eficiência Energética, S.A/Marpe - Construções e Instalações Técnicas, S.A. pelo preço de €1.406.920,45, ao qual acresce o correspondente valor em IVA, à taxa legal aplicável.
2. Para além do referido no número anterior, são dados como assentes e relevantes para a decisão os seguintes factos:
a) Por deliberação do Conselho de Administração do Hospital de 4 de Novembro de 2010 foi autorizado o procedimento de "processo com convite", para formação do referido contrato, ao abrigo do nº 4 do artigo 5º do Regulamento Interno de Compras do Hospital;
b) No "processo com convite" adoptado foram enviados convites a três empresas, tendo todas apresentado propostas;
c) Por deliberação do Conselho de Administração do Hospital, de 6 de Janeiro de 2011, a obra foi adjudicada à proposta apresentada pelo consórcio "EDP Serviços - Sistemas para a Qualidade e Eficiência Energética, S.A/Marpe - Construções e Instalações Técnicas, S.A. Teixeira Duarte, S.A., no valor indicado em 1, pelo qual veio a ser celebrado o contrato;
d) O contrato tem um prazo de execução de 14 meses;
e) A consignação foi realizada em 25 de Fevereiro de 2011;
f) Em sessão diária de visto de 30 de Março de 2011, decidiu-se devolver o contrato ao Hospital (1) para que explicitasse as razões por que considerava que com o "processo com convite" a três entidades, por si escolhidas, para formação do presente contrato, ficaram respeitados os "princípios da igualdade, concorrência e transparência, resultantes dos Tratados europeus e da Constituição e lei portuguesas";
h) A tal questão, o Hospital respondeu nos seguintes termos (2):
"[N]o que respeita à questão colocada, o Hospital de S. João, entidade pública empresarial, criada através do Decreto-Lei n°233/2005, de 29 de Dezembro, enquadrando-se na previsão contida no artigo 5.°, nº 3, do Código da Contratação Pública e não lhe sendo aplicável a parte II do Código, relativa aos procedimentos pré-contratuais para a formação dos contratos de valor inferior aos montantes estabelecidos nos termos das alíneas b) e c) do artigo 7.° da Directiva n.° 2004/18/CE, homologou, em 18 de Dezembro de 2008, um "Regulamento Interno de Compras", destinado a regular a tramitação dos procedimentos excluídos pela referida norma, o qual estabeleceu expressamente no seu artigo 3° a obediência aos princípios gerais da actividade administrativa, em cumprimento do disposto no n° 6 do citado artigo 5° do CCP, assim se reconhecendo a exigência do cumprimento dos aludidos princípios aos contratos celebrados pelo Hospital, mesmo nos casos dos contratos cujos valores estejam abaixo dos limiares fixados para aplicação da directiva comunitária e aos quais não se apliquem as regras pré-contratuais estabelecidas no Código dos Contratos Públicos.
Ora, à semelhança, quer das Directivas europeias de contratação pública (em especial a Directiva n.° 2004/18/CE) quer do CCP, o Regulamento estabeleceu um conjunto de procedimentos, consoante as situações, para a formação dos contratos de empreitada e de aquisição de bens e serviços, aí se estabelecendo procedimentos concorrenciais abertos e procedimentos mais fechados ou mesmo fechados para as situações em que não se justificasse ou fosse inviável a sua total abertura.
Quer-se com isto dizer que, ainda que excepcionado da aplicação dos procedimentos previstos no CCP, o Hospital reconhece, e reconheceu, que se encontra vinculado a adoptar práticas de contratação que salvaguardem a concorrência, admitindo no seu Regulamento, aliás na esteira das Directivas já citadas e do próprio CCP, procedimentos concorrenciais mais abertos e procedimentos fechados - aquisição directa - apenas quando não haja alternativa concorrencial, escalonando-os em função dos valores envolvidos e procurando a salvaguarda máxima do principio da concorrência, mas e naturalmente, mediante procedimentos mais ágeis e eficientes que os consignados no CCP, o que, inclusivamente, determinou e fundamentou a exclusão legalmente concedida às entidades com esta natureza pelo legislador nacional, atenta a sua especificidade.
De acordo com as regras do Regulamento Interno, o contrato em apreço foi celebrado na sequência de um processo com convite, que nos termos do mesmo e no que às empreitadas respeita, permite a celebração de contratos até € 2.000.000,00, não constituindo um procedimento fechado e permitindo um nível de concorrência necessário e ajustado ao valor envolvido.
Ademais, a vigência de quase três anos do presente Regulamento tem permitido ao Hospital constatar que, ainda assim, muitos dos convites são declinados e que os processos com publicitação não trazem aos procedimentos um número de concorrentes superior aos dos processos com convite, havendo ainda, porque é do interesse do hospital, o cuidado de abrir o leque de entidades convidadas.
Ainda e reconhecendo que a aquisição directa constitui um procedimento completamente fechado e que não integra qualquer nível de concorrência, o mesmo só foi admitido no Regulamento nos casos em que os valores do contrato são muito reduzidos ou quando se demonstre inviável qualquer outra solução procedimental que melhor salvaguarde a concorrência, o que não foi o caso do contrato ora apreciado.
Face à argumentação expendida, considerando a situação de excepção em que se encontra o Hospital quanto à aplicação dos procedimentos pré-contratuais estabelecida no n°3 do artigo 5°, os procedimentos e respectivos trâmites consignados no seu Regulamento Interno, encontram-se estabelecidos em função dos valores envolvidos, escalonando-se os níveis de concorrência em consonância com os mesmos, à semelhança da legislação comunitária e do próprio CCP, num grau de exigência compaginável com o espirito subjacente à situação de excepção legalmente conferida, salvaguardando, através dos mesmos, os princípios a que está sujeito.
Cabe por último referir, que à elaboração do Regulamento vindo de citar, subjaz a intenção do rigoroso cumprimento dos Princípios a que está vinculado o Hospital, constituindo a sua legalidade uma convicção firme desta Instituição, que pugna pelo rigoroso cumprimento da Lei e pela conformidade dos seus contratos, submetendo-os à fiscalização preventiva desse Tribunal sempre que à mesma estão sujeitos".
II - FUNDAMENTAÇÃO (3)
3. A questão que se suscita no presente processo é a de saber se o presente contrato poderia ter sido formado por "processo com convite", procedimento previsto e regulado na alínea b) do nº 1 e no nº 4 do artigo 4º, no nº 4 do artigo 5º e ainda, designadamente, nos artigos 8º a 17º e 19º, todos do Regulamento Interno de Compras do Hospital.
II.A - Do princípio da concorrência
4. O princípio da concorrência é, de há muito, um dos princípios basilares da contratação pública, tanto no âmbito nacional como no comunitário.
Tal sucede, aliás, na generalidade dos Estados de Direito, como não podia deixar de ser, já que se apresenta como imprescindível à protecção do princípio fundamental da igualdade, que lhes é inerente, e, simultaneamente, como a melhor forma de proteger os interesses financeiros públicos.
5. Na ordem jurídica portuguesa, tal como tem sido expresso na doutrina e na jurisprudência, estão constitucionalmente estabelecidos os princípios da igualdade e da concorrência e a obrigação de a Administração Pública os respeitar na sua actuação (4), seja em que circunstâncias for, em nome simultaneamente dos valores fundamentais, da ordem económica e da prossecução do interesse público.
Estes princípios constitucionais aplicam-se a qualquer actuação da Administração Pública, mesmo que de gestão privada (5) e têm uma especial incidência em matéria de contratação pública.
Nessa linha, o Código dos Contratos Públicos (CCP) (6) estabelece, no n.º 4 do seu artigo 1.º, que "[à] contratação pública são especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência".
6. Estes princípios estão também claramente estabelecidos na ordem jurídica comunitária a que nos encontramos vinculados.
Os tratados europeus afirmam um objectivo de integração económica, a realizar através do respeito pelas «liberdades fundamentais» (livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais), de onde deriva a obrigatoriedade de os Estados membros da União Europeia legislarem e agirem de modo a assegurarem a mais ampla concorrência possível e a prevenirem quaisquer favorecimentos.
Como se referiu, entre outros, nos processos do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) n.ºs C-458/03, Parking Brixen, e C-324/98, Telaustria, quando uma autoridade pública confia o exercício de uma actividade económica a terceiros, aplica-se o princípio da igualdade de tratamento e as suas expressões específicas, nomeadamente o princípio da não-discriminação, bem como os artigos 43.º e 49.º do Tratado CE (7), sobre a liberdade de estabelecimento e a livre prestação de serviços. O TJCE afirma ainda que estes princípios implicam uma obrigação de transparência, que consiste em assegurar a todos os potenciais concorrentes um grau de publicidade adequado, que permita abrir o mercado de bens e serviços à concorrência.
Ainda que as directivas emitidas para a coordenação dos procedimentos nacionais de adjudicação de contratos públicos excluam do seu âmbito algumas áreas da contratação, bem como contratos que não atinjam determinados montantes, o TJCE tem sido claro e afirmativo no sentido de que os princípios referidos se aplicam mesmo que não sejam aplicáveis as directivas relativas aos contratos públicos, uma vez que derivam directamente dos Tratados (8).
7. Os princípios da igualdade e da concorrência impõem-se, pois, à actividade contratual pública, tanto por via constitucional, como por via comunitária.
Ora, o respeito pelos princípios em causa e, em particular, pelo princípio da concorrência, implica que se garanta aos interessados em contratar o mais amplo acesso aos procedimentos, através da transparência e da publicidade adequada.
É também esse o modo de garantir a melhor protecção dos interesses financeiros públicos, já que é em concorrência que se formam as propostas competitivas e que a entidade adjudicante pode escolher aquela que melhor e mais eficientemente satisfaça o fim pretendido.
As teorias dos jogos e dos leilões demonstram matematicamente que assim é, sendo que, nos termos do artigo 42.º, n.º 6, da Lei de Enquadramento Orçamental (9), nenhuma despesa pode ser autorizada ou paga sem que satisfaça os princípios da economia e da eficiência.
Em suma, o respeito pelo princípio da concorrência e seus corolários subjaz a qualquer actividade de contratação pública, por força de imperativos comunitários, por directa decorrência de normas constitucionais, por previsão da lei aplicável à contratação e por imposição da legislação financeira e dos deveres de prossecução do interesse público e de boa gestão.
Donde resulta que para a formação de contratos públicos devem ser usados procedimentos que promovam o mais amplo acesso à contratação dos operadores económicos nela interessados.
II.B - Dos procedimentos de contratação pública
8. As directivas europeias de contratação pública (em especial a Directiva n.º 2004/18/CE) e, no plano nacional, o Código dos Contratos Públicos, estabelecem um conjunto de procedimentos a seguir, consoante as situações, para a formação de contratos públicos.
Em ambos os casos são estabelecidos como regra procedimentos concorrenciais abertos.
No entanto, ambos os diplomas estabelecem também excepções à utilização desses procedimentos concorrenciais abertos, admitindo que há situações em que não se justifica ou não é possível desenvolvê-los.
9. A este respeito importa ter presentes dois aspectos bem clarificados na jurisprudência do TJCE, os quais são também plenamente transponíveis e aplicáveis no plano exclusivamente nacional.
Em primeiro lugar, as directivas comunitárias de contratação pública (tal como a Parte II do Código dos Contratos Públicos), procedendo à definição de procedimentos a utilizar na adjudicação de contratos públicos, têm de ser vistos como meros instrumentos de realização dos princípios e objectivos mais amplos referidos no ponto anterior. Donde resulta que, mesmo quando os procedimentos típicos estabelecidos nas directivas ou na legislação nacional não sejam aplicáveis, a entidade pública está vinculada a adoptar práticas de contratação que salvaguardem a concorrência.
Por outro lado, sempre que a lei estabeleça excepções aos procedimentos concorrenciais mais abertos, deve ser-se muito rigoroso e exigente na interpretação e na aplicação dessas excepções, procurando sempre a salvaguarda máxima do princípio da concorrência e admitindo a realização de procedimentos não abertos a uma efectiva concorrência apenas quando não haja alternativa possível.
II.C - Do regime legal de pré-contratação aplicável no âmbito dos Hospitais E.P.E.
10. O Hospital de S. João foi transformado em Entidade Pública Empresarial (E.P.E.) por força do Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro.
De acordo com o artigo 13.º deste diploma, a aquisição de bens e serviços por ele efectuada reger-se-ia pelas normas de direito privado, sem prejuízo da aplicação do regime do direito comunitário relativo à contratação pública. Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, os regulamentos internos dos hospitais E.P.E. deviam garantir aquela prescrição, "bem como, em qualquer caso, o cumprimento dos princípios gerais da livre concorrência, transparência e boa gestão, designadamente a fundamentação das decisões tomadas".
O referido artigo 13.º foi revogado pelo artigo 14.º, n.º 1, alínea o), do Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, que aprovou o Código dos Contratos Públicos.
Um hospital E.P.E. é uma pessoa colectiva que foi criada para satisfazer especificamente necessidades de interesse geral, que, não obstante a sua designação, não tem uma natureza empresarial, no sentido em que não tem carácter industrial ou comercial, e tem um modelo de financiamento e controlo de gestão que preenche os critérios referidos na alínea c) do n.º 9 do artigo 1.º da Directiva 2004/18/CE e na alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos.
Deve, assim, ser considerado um organismo de direito público e uma entidade adjudicante para efeitos da aplicação daquela directiva e daquele código.
Ora, nos termos do artigo 19.º do Código dos Contratos Públicos, a adjudicação de contratos de empreitada de valor igual ou superior a € 1.000.000,00 pelas entidades adjudicantes referidas no n.º 2 do artigo 2.º tem de ser precedida da realização de concursos públicos ou concursos limitados por prévia qualificação.
No entanto, o artigo 5.º, n.º 3, do mesmo Código determina que a parte II do Código, relativa aos procedimentos pré-contratuais, não se aplica à formação dos contratos a celebrar pelos hospitais E.P.E de valor inferior aos montantes estabelecidos nos termos das alíneas b) e c) do artigo 7.º da Directiva n.º 2004/18/CE (como é o caso).
O n.º 6 do mesmo artigo estabelece que à formação destes contratos se aplicam os princípios gerais da actividade administrativa, as normas que concretizem preceitos constitucionais constantes do Código do Procedimento Administrativo e, eventualmente, as normas desse Código.
Ou seja, determina-se expressamente que os princípios referidos nos nºs 4 a 9 deste acórdão se aplicam aos contratos celebrados pelos hospitais E.P.E., mesmo nos casos dos contratos cujos valores estejam abaixo dos limiares fixados para aplicação da directiva comunitária e aos quais não se apliquem as regras pré-contratuais estabelecidas no Código dos Contratos Públicos.
11. O Conselho de Administração do Hospital de S. João, E.P.E., homologou, em 18 de Dezembro de 2008, um "Regulamento Interno de Compras" (10).
Desse regulamento extraem-se as seguintes normas, com relevância para o presente caso:
Artigo 1.º:
"Âmbito de aplicação
O presente Regulamento aplica-se aos procedimentos tendentes à formação de contratos de empreitadas de obras públicas, de locação ou aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços do Hospital de S. João, E.P.E., excluídos nos termos do n.º 3 do artigo 5.º, do âmbito do Código de Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro."
Artigo 2.º:
"Objecto
O presente Regulamento estabelece as regras a que obedecem os procedimentos tendentes à formação dos contratos mencionados no artigo anterior."
Artigo 3.º:
"Princípios
Os procedimentos destinados à formação dos contratos abrangidos pelo presente Regulamento respeitarão os princípios da actividade administrativa, especialmente os princípios da Transparência, Igualdade e Concorrência."
Artigo 4.º:
"Tipos de Procedimentos
1. A contratação relativa à aquisição de bens e serviços e à realização de empreitadas é precedida de um dos seguintes procedimentos:
a)Processo com publicitação;
b) Processo com convite;
c) Aquisição directa.
2. O processo com publicitação é tornado público mediante publicitação de anúncio no site do Hospital na Internet, podendo ainda ser publicitado na plataforma electrónica que vier a ser definida pelo Hospital, destinada aos procedimentos desencadeados ao abrigo do Código dos Contratos Públicos.
3. No processo com publicitação, qualquer interessado que reúna os requisitos estabelecidos no anúncio poderá apresentar a sua proposta.
4. No processo com convite, o Hospital convida directamente as entidades a apresentar proposta, mediante envio de convite por qualquer meio escrito, não podendo o número de entidades ser inferior a três.
5. O processo de aquisição directa não está sujeito a qualquer formalidade especial, podendo a adjudicação recair directamente sobre proposta solicitada pelo Hospital ou factura apresentada pelo fornecedor ou prestador.
(...)"
Artigo 5.º:
"Escolha de Processo
1. A escolha do tipo de procedimento a adoptar cabe à entidade competente para a decisão de contratar e para autorizar a realização da respectiva despesa.
2.(...)
3. O Processo com publicitação permite celebrar contratos para a realização de empreitadas e aquisições de bens e serviços, cujo valor não exceda os limiares fixados nas Directivas Comunitárias, para cada um dos referidos tipos de contrato.
4. O Processo com convite permite celebrar contratos para a realização de empreitadas até ao valor de 2.000.000,00 € e de aquisição de bens e serviços até ao limite fixado na Directiva Comunitária.
5. O processo de Aquisição Directa permite celebrar contratos de realização de empreitadas até ao limite de 125.000,00 € e de aquisição de bens e serviços até ao limite de 25.000,00 €."
Artigo 6.º:
"Escolha de Processo independentemente do valor do contrato
1. Qualquer que seja o valor do contrato a celebrar, poderá ser adoptado o processo de aquisição directa quando:
a) Em anterior processo com publicitação não tenha sido apresentada qualquer proposta ou todas as propostas apresentadas tenham sido excluídas;
b) Por motivos de urgência imperiosa e na medida do estritamente necessário, não possa ser seguido qualquer um dos outros tipos de procedimento;
c) Por motivos de aptidão técnica, artística ou relacionados com a protecção de direitos exclusivos;
d) Quando se trate de aquisição de bens ou serviços complementares que, por razões técnicas ou económicas, não devam ser separados do contrato inicial."
Artigo 22.º:
"Dúvidas e Omissões
As dúvidas e omissões suscitadas pelo presente Regulamento serão supridas por recurso ao Código dos Contratos Públicos."
12. Como acima referimos, à formação dos contratos em causa aplicam-se os princípios constitucionais e legais da actividade administrativa e contratual, tanto nacionais como comunitários.
As normas do Regulamento Interno de Compras do Hospital são de natureza regulamentar e não legal, e, portanto, enquanto expressão da vontade administrativa da entidade adjudicante, são integralmente condicionadas, na sua validade, pelo respeito dos referidos princípios.
II.D - Do processo com convite
13. Nos termos do Regulamento acima referido, o processo por convite está sujeito a formalidades muito simplificadas, limitando-se o Hospital a endereçar convites a, pelo menos, três entidades por ele próprio escolhidas.
O convite contém os elementos essenciais relativos à contratação pretendida.
O "processo por convite", dirigido a entidades escolhidas pelo dono da obra, tal como foi aplicado no caso, constitui um procedimento em que o âmbito da concorrência é integralmente estabelecido por este.
Conforme decorre da matéria de facto, o Hospital endereçou o convite a três empresas e de todas obteve propostas.
Houve, pois, concorrência, mas muito limitada e com o seu âmbito estabelecido pela entidade adjudicante.
14. A obra representa uma despesa próxima de 1.400.000,00 €.
Ora como se disse, no Acórdão nº 40/10-03.NOV-1ªS/SS deste Tribunal, "[p]ara esta ordem de valores o Código dos Contratos Públicos exige a realização de concursos que garantam a mais ampla concorrência".
Também então se disse: "quando os procedimentos típicos estabelecidos nas directivas ou na legislação nacional não sejam aplicáveis, a entidade pública está autorizada a adoptar procedimentos mais flexíveis mas está vinculada a adoptar práticas de contratação que salvaguardem a concorrência.
No que concerne a contratos não abrangidos pelas directivas de contratação pública, o TJCE, no acórdão tirado no processo T-258/06, refere-se à admissibilidade de não realização de um concurso público formal, de a entidade adjudicante apreciar as especificidades de um contrato na perspectiva da sua adequação às possíveis modalidades de recurso à concorrência e à flexibilidade dos meios de publicidade admitidos.
Mas, tal decisão é inequívoca na afirmação reiterada de que os princípios impõem uma publicitação prévia antes da adjudicação do contrato público, por forma a que os eventuais interessados em concorrer possam manifestar o seu interesse em aceder à contratação.
A decisão de que um determinado contrato deve ser excepcionalmente subtraído às regras da concorrência tem de ser efectuada em função das circunstâncias concretas de cada caso e fundamentada numa justificação clara e aceitável à luz desses princípios" (11).
15. Como se viu na matéria de facto (12), o Hospital foi questionado sobre como considerava que com o "processo com convite" a três entidades, por si escolhidas, ficaram respeitados os "princípios da igualdade, concorrência e transparência, resultantes dos Tratados europeus e da Constituição e lei portuguesas".
O Hospital manifestou a sua posição alegando o que acima consta da alínea h) do nº 2.
Em tais alegações são feitas afirmações cuja correção de intenção deve ser realçada.
Designadamente quando se diz que, no seu regulamento de compras, "no seu artigo 3°" se fixa "a obediência aos princípios gerais da actividade administrativa, em cumprimento do disposto no n° 6 do citado artigo 5° do CCP, assim se reconhecendo a exigência do cumprimento dos aludidos princípios aos contratos celebrados pelo Hospital, mesmo nos casos dos contratos cujos valores estejam abaixo dos limiares fixados para aplicação da directiva comunitária e aos quais não se apliquem as regras pré-contratuais estabelecidas no Código dos Contratos Públicos" e quando se afirma que "o Hospital reconhece, e reconheceu, que se encontra vinculado a adoptar práticas de contratação que salvaguardem a concorrência".
Admite-se igualmente que, no regulamento, se podem estabelecer "procedimentos mais ágeis e eficientes que os consignados no CCP" e "procedimentos concorrenciais abertos e procedimentos mais fechados ou mesmo fechados para as situações em que não se justificasse ou fosse inviável a sua total abertura (...) quando não haja alternativa concorrencial, escalonando-os em função dos valores envolvidos e procurando a salvaguarda máxima do principio da concorrência".
E regista-se ainda que o Hospital manifesta intenção de "rigoroso cumprimento dos Princípios a que está vinculado (...)" pugnando "pelo rigoroso cumprimento da Lei e pela conformidade dos seus contratos, submetendo-os à fiscalização preventiva desse Tribunal sempre que à mesma estão sujeitos".
Contudo, em contraste com tais declarações, devem ser sublinhados outros aspectos que não suscitam a nossa adesão.
Assim, discorda-se que a observância daqueles princípios seja compatível com um Regulamento Interno que, "no que às empreitadas respeita","permite a celebração de contratos até € 2.000.000,00", "na sequência de um processo com convite", "não constituindo um procedimento fechado e permitindo um nível de concorrência necessário e ajustado ao valor envolvido".
Ao contrário: o que se defende é que para contratos desta natureza e deste valor, "o nível de concorrência necessário e ajustado" não é compatível com um procedimento de convites em que as entidades convidadas são escolhidas pela entidade adjudicante, inexistindo qualquer publicitação.
Se nada obsta, como se disse, que no regulamento, se podem estabelecer "procedimentos mais ágeis e eficientes que os consignados no CCP" e que "os procedimentos e respectivos trâmites consignados no seu Regulamento Interno, [sejam] estabelecidos em função dos valores envolvidos, escalonando-se os níveis de concorrência em consonância com os mesmos, à semelhança da legislação comunitária e do próprio CCP" , a observância de " [um] grau de exigência compaginável com o espirito subjacente à situação de excepção legalmente conferida", e com "os princípios a que está sujeito", não permite que, para contratos daquela natureza e daquele valor, o Hospital estabeleça um procedimento quase fechado à concorrência.
16. Na sequência de tudo o que foi dito, o que se defende, face ao regime jurídico aplicável à contratação pública operada pelo Hospital, é que não estando este vinculado a seguir os procedimentos do CCP, podendo adoptar, mediante os seus regulamentos, procedimentos mais flexíveis, para o tipo de contrato e valor em causa, o Hospital deve seguir procedimento que tenha como elemento fundamental a prévia publicitação da sua vontade de contratar, "por forma a que eventuais interessados em concorrer possam manifestar o seu interesse em aceder à contratação".
Só desta forma, haverá observância dos princípios da transparência, da igualdade e da concorrência, consagrados na Constituição, na lei nacional e na lei comunitária, que nos termos já anteriormente expostos o Hospital deve observar.
Não se perca de vista o essencial: o Hospital é uma instituição pública e os recursos que gere são públicos. O contrato em apreciação envolve um elevado valor: são cerca de 1,4 milhões de euros. A boa gestão financeira pública exige respeito pela transparência, pela igualdade e pela concorrência. Só com esse respeito se poderão obter as melhores propostas, para servir melhor os interesses públicos. Só a publicitação do procedimento de formação do contrato asseguraria o respeito por tais valores e a prossecução dessas finalidades.
E não se perca de vista outro aspecto também essencial: para a dimensão do mercado português, uma aquisição no valor de cerca de 1,4 milhões de euros tem relevância que exige que a concorrência seja adequadamente salvaguardada, por forma a se respeitarem os princípios fundamentais consagrados na Constituição e na Lei de ordem económica.
É preciso dizer-se claramente que se reconhece que, da lei, resulta que os contratos celebrados pelo Hospital não estão subordinados ao disposto na Parte II do CCP, por força do que se dispõe no nº 3 do seu artigo 5º. O que se defende é que estando o Hospital obrigado, por via constitucional, legal e comunitária, a observar os já referidos princípios fundamentais da contratação pública, tal observância passa por publicitar a sua vontade de contratar, sob pena de, se assim não for feito, aqueles princípios se tornarem palavras vãs. E repete-se igualmente: estamos perante a formação de contratos cuja natureza e dimensão financeira, em regra (13), as entidades adjudicantes devem conduzir utilizando o concurso público ou o concurso limitado por prévia qualificação. Foi essa a opção do legislador português. É essa a solução-regra estabelecida na lei portuguesa.
Em conclusão: o Hospital face à sua natureza e face ao tipo de contrato e à sua dimensão financeira, respeitando o disposto no CCP, não tinha de conduzir um concurso público ou concurso limitado por prévia qualificação. Mas o Hospital, também face à sua natureza e face ao tipo de contrato e à sua dimensão financeira, para observância dos princípios fundamentais da contratação pública, estava obrigado a adoptar um procedimento que assentasse na publicitação da sua vontade contratar.
Opção diferente só poderia assentar em demonstração de que um procedimento assim aberto era inviável ou injustificado. O que não aconteceu, no presente caso.
17. Ora, como já se viu, o que sucedeu foi que, ao abrigo de uma norma geral de natureza regulamentar, se entendeu que o caso, face ao seu valor, permitia a subtracção quase total à concorrência, mediante a sua não publicitação.
A norma regulamentar admite que, para valores inferiores a 2 milhões de euros, seja possível adjudicar uma empreitada de obra pública, sem qualquer publicitação, e mediante um mero procedimento com convites dirigidos, pelo menos a 3 entidades, escolhidas pelo dono da obra.
É, pois, uma norma, que não justifica a razão de ser para o desvio que admite relativamente ao princípio da concorrência, evidentemente assegurado pela publicitação da vontade de contratar pela entidade pública adjudicante.
18. As normas regulamentares do Hospital não são, assim, adequadas nem conformes aos princípios da igualdade, concorrência e transparência, que, já vimos, deveriam respeitar e aplicar. Essas normas não evidenciam qualquer razão de ser para o relevante desvio que admitem relativamente ao princípio vinculante da concorrência, nem prevêem ou exigem que a entidade adjudicante o faça em concreto.
A opção por um procedimento de consulta restrita só seria legítimo face aos princípios aplicáveis, se se demonstrasse que não era possível adoptar qualquer outra solução procedimental que melhor acautele a concorrência, ou seja, se se demonstrasse que um procedimento aberto era inviável ou injustificado.
Ora, as circunstâncias concretas do caso não fornecem uma justificação razoável nesse sentido ou demonstram que o recurso a uma solução concorrencial aberta não era possível.
II.E - Da relevância das ilegalidades verificadas
19. Conforme decorre do exposto, na contratação em causa verificou-se a violação dos princípios da igualdade, concorrência e transparência, resultantes dos Tratados europeus e da Constituição e lei portuguesas e dos artigos 1.º, n.º 4, e 5.º, n.º 6, do Código dos Contratos Públicos.
Tal violação implica a susceptibilidade de alteração do resultado financeiro do procedimento.
Isto é, se não tivesse ocorrido a violação de lei referida (se tivesse sido adoptado um procedimento com publicitação), é possível que tivessem sido obtidos resultados diferentes, com melhor protecção dos interesses financeiros públicos.
Enquadram-se, pois, tais violações no disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 44º da LOPTC (14), quando aí se prevê, como fundamento para a recusa de visto, "ilegalidade que ... possa alterar o respectivo resultado financeiro."
Sublinhe-se que, para efeitos desta norma, quando aí se diz "[i]legalidade que (...) possa alterar o respectivo resultado financeiro" pretende-se significar que basta o simples perigo ou risco de que da ilegalidade constatada possa resultar a alteração do respectivo resultado financeiro.
Para além disso, a realização de procedimentos concorrenciais e não discriminatórios protege ainda o interesse financeiro de escolha das propostas que melhor e mais económica e eficientemente se ajustam às necessidades públicas, dessa forma acautelando a adequada utilização da despesa pública envolvida e sendo instrumento da realização do disposto nos artigos 42.º, n.º 6, e 47.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento Orçamental.
A não observância de procedimentos que acautelem a concorrência e a não discriminação implica, assim, também a violação das normas financeiras acabadas de referir.
Há pois fundamentos para recusa do visto.
III - DECISÃO
20. Pelos fundamentos indicados, e nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 44.º da Lei nº 98/97, acordam os Juízes do Tribunal de Contas, em Subsecção da 1.ª Secção, em recusar o visto ao contrato acima identificado.
21. Mais decidem remeter o presente acórdão ao Ministério Público, para que pondere suscitar junto da Jurisdição Administrativa a questão da conformidade legal do "Regulamento Interno de Compras" do Hospital de S. João, E.P.E, homologado, em 18 de Dezembro de 2008, pelo respectivo Conselho de Administração, nos aspectos que agora foram abordados, em particular tendo em conta que aquele Hospital está obrigado a observar os princípios fundamentais da contratação pública, consagrados na Constituição, na Lei e no Direito Comunitário, e este regulamento admite que para a formação de contratos de empreitada até ao valor de 2.000.000,00 € possa ser realizado procedimento sem prévia publicitação.
22. São devidos emolumentos nos termos do artigo 5º, n.º 3, do Regime Jurídico dos Emolumentos do Tribunal de Contas(15).
Lisboa, 14 de Abril de 2010
Os Juízes Conselheiros,
(João Figueiredo - Relator)
(Alberto Fernandes Brás)
(Helena Abreu Lopes)
Fui presente
(Procurador Geral Adjunto)
(António Cluny)
(1) Pelo ofício nº DECOP/UAT1/2504/2011, de 30 de Março de 2011.
(2) Vide ofício nº 6525, de 11 de Abril de 2011, a fls. 112 dos autos.
(3) Dado que, em aspectos essenciais, no presente processo, se suscitam as mesmas questões abordadas no Processo nº 1303/2010, seguir-se-á de perto a fundamentação do Acórdão nº 40/2010 - 03.NOV.-1ª S/SS que decidiu aquele processo, por se concordar com ela. O mesmo se diga relativamente ao Acórdão nº 7 /2011 - 22.FEV.-1ª S/SS e ao que foi proferido no Processo nº 270/2011.
(4) Cfr. artigos 81.º, alínea f), 99.º, alínea a), e 266.º da Constituição.
(5) Cfr. artigo 2.º, n.º 5, do Código do Procedimento Administrativo.
(6) Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 18-A/2008, de 28 de Março, e alterado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 223/2009, de 11 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 278/2009, de 2 de Outubro, e pela Lei n.º 3/2010, de 27 de Abril.
(7) Hoje artigos 49.º e 56.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
(8) O recente acórdão de 20 de Maio de 2010, tirado no processo T-258/06, é bastante esclarecedor nessa matéria.
(9) Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, alterada pela Lei Orgânica n.º 2/2002, de 28 de Agosto, pela Lei n.º 23/2003, de 2 de Julho, pela Lei n.º 48/2004, de 24 de Agosto, pela Lei n.º 48/2010, de 19 de Outubro.
(10) Vide fls. 92 e seguintes dos autos. Vide esse regulamento igualmente no processo nº 1303/2010.
(11) Negritos nosso.
(12) Vide acima a aliena f) do nº 2.
(13) Vide a alínea a) do artigo 19º do CCP que, para as entidades referidas no nº 2 do artigo 2º, só admite ajuste directo (portanto, sem qualquer publicitação) para a formação de contratos de empreitada até 1 milhão de euros. A partir de tal valor, devem conduzir concursos públicos ou concursos limitados por prévia qualificação, com publicitação, portanto.
(14) Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas: Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 87-B/98, de 31 de Dezembro, 1/2001, de 4 de Janeiro, 55-B/2004, de 30 de Dezembro, 48/2006, de 29 de Agosto, 35/2007, de 13 de Agosto, e 3-B/2010, de 28 de Abril.
(15) Aprovado pelo Decreto-Lei nº 66/96, de 31 de Maio, com as alterações introduzidas pela Lei nº 139/99, de 28 de Agosto, e pela Lei nº 3-B/2000, de 4 de Abril.