Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 23 de fevereiro de 2012 (proc. 8460/12)

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Sumário:

1. Nem sempre a um preço anormalmente baixo obtido por aplicação do disposto no art.º 71.º, n.º 1, do CCP, corresponde um preço anormalmente baixo segundo a lógica do mercado;
2. Tal situação ocorre, designadamente, quando se constata que o preço base é anormalmente alto, isto é, quando é substancialmente mais elevado que a média dos preços de todas as propostas apresentadas.
3. Nessa situação, e sem embargo da aplicação do citado n.º 1 do art.º 71.º do CCP, a diferença entre o mais baixo preço proposto e o preço base não legitima uma conclusão automática de se estar perante uma proposta de preço anormalmente baixo segundo a lógica de mercado;
4. Nesse contexto a apreciação das notas justificativas e os esclarecimentos prestados pelos concorrentes deve levar em conta o preço base como critério meramente indicativo, e ainda todas as circunstâncias de ordem técnica, económica, financeira, social, de mercado e mesmo o planeamento de execução da obra ou do fornecimento, que enformam a proposta.
Nessa apreciação o dono da obra não está vinculado a atender exclusivamente aos critérios estabelecidos no art.º 71.º, n.º 4, do CCP, gozando ainda de ampla discricionariedade quanto à aferição da razoabilidade e pertinência dos esclarecimentos prestados, desde que respeite os princípios a que se subordina a contratação pública.

 

Texto Integral:

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

1 - Relatório
a) - As partes e o objecto do recurso

V..........., S.A., com os demais sinais nos autos, interpôs no TAF de Ponta Delegada acção de contencioso pré-contratual contra a ADMINISTRAÇÃO DOS PORTOS DAS ................. - A..........., S.A., e em que figura como contra-interessada J.............., LDA., com sede na Zona ................, Lotes 109-110-111, Apartado .........-999 .................
Pediu a anulação do ato de adjudicação à contra-interessada do "Fornecimento e montagem de bombas centrífugas para o sistema de combate a incêndio no Terminal de Navios de Cruzeiro de Ponta Delgada", no âmbito do procedimento concursal n° 1471/2011, que a ré anunciou no Diário da Republica de 31 de Março de 2011, condenando-se esta à prática de novo ato que, excluindo a proposta da contra-interessada, adjudique o fornecimento à autora, por violação do disposto nos artigos 57.°, n.° 1, alínea d), 71.°, n.° 4, e 146.°, n.° 2, alínea d), do Código dos Contratos Públicos (CCP).

Inconformada com a sentença que absolveu a ré e a contra-interessada do pedido, interpôs recurso jurisdicional em cujas alegações conclui como segue:
1. A sentença recorrida é nula, por omissão de pronúncia - al. d) do n.° 1 do art. 668° do CPC.
2. O Tribunal a quo não respondeu à questão "apresentou a contra-interessada documentos que justificassem a apresentação de "preço anormalmente baixo", sendo esta resposta fundamental para apreciar o cumprimento pela entidade adjudicante da alínea d) do n°2 do art. 146 do CCP, na remissão operada para o art. 57° n° 1 ai d).
3. O Tribunal também não apreciou a alegação de que os elementos constantes do procedimento não permitem fazer um juízo sobre a licitude do preço apresentado pela contra-interessada.
4. O Tribunal não apreciou a alegação de que a entidade adjudicante tinha, em cumprimento do art. 71°, que investigar, ainda que de forma superficial, os elementos da proposta da contra-interessada.
5. A entidade adjudicante só cumpre o art. 71° do CCP se cumprir o seu dever de investigar se a proposta de preço anormalmente baixo é sustentável, sendo este um dever estabelecido não só para protecção do concorrente que apresenta tal proposta, mas também para protecção dos restantes concorrentes.
6. A omissão dessa investigação constante dos presentes autos viola o art. 71° do CCP (cfr. acórdãos citados nas alegações).
7. A R. não sabe nem tem elementos no procedimento para saber a resposta a nenhuma das questões que devem, em obediência às mais elementares questões cuja existência de um regime de preços anormalmente baixos impõe que se coloquem.
8. O regime dos preços anormalmente baixos procura salvaguardar o bem "concorrência", tendo esta salvaguarda que ser feita através da protecção de outros bens de que esta depende, designadamente a igualdade de oportunidades no procedimento, e a igualdade de oportunidades a nível do mercado, uma vez que um mercado que contenha distorções (como seja a prática de preços ditados por outros mecanismos que não a lei da oferta e da procura - por exemplo, "dumping") é um mercado anti-concorrencial por natureza.
9. A R. não sabe nem possui elementos no procedimento para saber a resposta a nenhuma das questões que devem, em obediência às mais elementares questões cuja existência de um regime de preços anormalmente baixos impõe que se coloquem.
10. A R. entende que não deve saber a resposta a nenhuma destas questões, e como tal, nem sequer as procurou, violando o art. 71° n°3 do CCP.
11. A discricionariedade existe na apreciação de facto s. A interpretação do direito, que é a questão central destes autos, continua, apesar da demissão do Tribunal "a quo", a ser tarefa dos Tribunais.
12. A entidade adjudicante é livre (fora erro grosseiro) de apreciar os elementos que dispõe. Não é, contudo, livre para demitir-se de pedir os elementos indispensáveis a essa apreciação, investigando todos os elementos indispensáveis para, a final, poder apreciar tais elementos, sendo somente este último juízo o que se enquadra dentro da sua discricionariedade técnica.
13. A conduta da R. e a jurisprudência do tribunal "a quo" permitem, no limite, um concorrente apresentar material contrabandeado a preços que serão naturalmente anormalmente baixos sem que ninguém queira saber o porquê, implementando-se na contratação pública portuguesa uma espécie de "don't ask don't tell" relativamente aos preços apresentados, por mais anormais que estes sejam, o que é terreno fértil, designadamente, para receptação de bens furtados, lavagem de capitais ou utilização de mão de obra escrava e, naturalmente, dumping salarial, ambiental ou abuso de posição dominante para extermínio da concorrência.

A recorrida contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo não tinha elencar quaisquer pretensos facto s relacionados com (í) a "questão: apresentou a contra-interessada documentos que justificassem a apresentação de preço anormalmente baixo?'" ou com (ii) a "questão: tinha o júri elementos suficientes em sua posse para fazer qualquer juízo técnico que preenchesse as exigências legais'", cujo carácter é manifestamente conclusivo.
2. A matéria de facto constante dos artigos 51.°, 52.°, 81.", 82.°, 83.°, 84.°, 86.°, 87.°, 88.°, 89.°, 91.°, 92.°, 93.°, 94.°, 95.°, 96.°, 98.°, 99.°, 100°, 101.° e 102.° da contestação da APSM não foi seleccionada pelo Tribunal a quo, apesar de poder ser relevante para a decisão a proferir, na hipótese de a sentença recorrida não subsistir. Deveria, por isso, ser ampliada a matéria de facto , de maneira a incluir esse âmbito, o que se invoca a título subsidiário e nos termos do artigo 684.°-A, n.° 2, do Código de Processo Civil, indicando como meios de prova as propostas que se encontram juntas ao processo instrutor.
3. A sentença recorrida não padece de qualquer omissão de pronúncia, tendo o Tribunal a quo cumprido o dever previsto no n.° 2 do artigo 660.° do CPC, pelo que não se verifica a nulidade referida na alínea d) do n.° 1 do artigo 668.° do mesmo Código, seja porque os aspectos apontados pela Recorrente neste domínio nem sequer constituem verdadeiras questões, seja porque todos eles foram, afinal, tidos em conta pelo Tribunal a quo.
4. A invocação pela Recorrente, apenas em sede de recurso jurisdicional e de uma forma totalmente inovadora, de uma pretensa violação, por parte do ato impugnado, do disposto no n.° 3 do artigo 71.° do CCP, consubstancia uma ampliação da causa de pedir processualmente inadmissível, pelo que a conclusão 10 e as três primeiras linhas da décima página da alegação da V.........., a partir de "na medida (...)" devem ser tidas como não escritas, para todos os efeitos legais, o que aqui se requer.
5. Clarifica-se, em qualquer caso, que tal pretensa violação não ocorreu.
6. As preocupações relacionadas com a concorrência subjacentes ao regime da contratação pública não permitem enquadrar a disciplina respeitante às propostas de preço anormalmente baixo. A necessidade de conciliar adjudicação ao mais baixo preço com a diminuição do risco de uma execução contratual insatisfatória corresponde ao interesse directa e imediatamente protegido pelo regime respeitante às propostas de preço anormalmente baixo - e, portanto, à razão de ser de tal regime -, enquanto que o mercado e a concorrência surgem, apenas, e de forma subalterna, como um interesse reflexamente protegido ou, quanto muito, como um interesse indirectamente protegido por aquele mesmo regime.
7. O elenco de situações justificativas de preços anormalmente baixos constante das alíneas do n.° 4 do artigo 71.° do CCP é meramente exemplificativo, pelo que, na consideração de propostas contemplando tais preços é admissível que sejam tidas outras realidades para além das mencionadas naquelas alíneas.
8. As entidades adjudicantes gozam de uma ampla margem de livre decisão (qualificável como discricionariedade de critério e como discricionariedade técnica) na apreciação de propostas contemplando preços anormalmente baixos, porquanto o juízo sobre a formação de um preço assenta num pressuposto intelectual de raiz essencialmente técnica.
9. Por isso, a actuação das entidades adjudicantes em matéria de preço anormalmente baixo não pode ser jurisdicionalmente sindicada, a não ser em caso de erro manifesto, e aquelas, no exercício da margem de livre decisão, as entidades adjudicantes podem, para os efeitos da apreciação de preços anormalmente baixos, socorrer-se de quaisquer elementos.
10. De harmonia com o quadro normativo assim gizado, os motivos pelos quais a proposta da CONTRA-lNTERESSADA foi admitida ao Concurso, não obstante o carácter anormalmente baixo do respectivo preço, (i) contemplaram as justificações apresentadas por aquele concorrente, mas não se limitaram às mesmas, já que (ii) foram tidos em conta outros aspectos da proposta em causa (os quais não deixaram de ser relacionados com as justificações apresentadas pela CONTRA-1NTERESSADA) e que são naturalmente passíveis de ponderação.
11. A A.......... dispunha, pois, de todos os elementos para apreciar o preço proposto pela CONTRA-lNTERESSADA.
12. Os motivos pelos quais o preço proposto pela CONTRA-lNTERESSADA foi admitido - designadamente, a diferença de preços nas bombas a montar e a economia na montagem e trabalhos acessórios - não padecem de qualquer erro patente ou grosseiro, ao contrário do que se depreende da alegação da V.............
13. A tentativa de assimilação pela V.............. dos domínios da concorrência e da contratação pública é totalmente incorrecta, já que os procedimentos pré-contratuais públicos não são a sede própria da investigação de aspectos específicos de concorrência, nem o conceito de preço anormalmente baixo, relevante em matéria de contratação pública, se confunde com o conceito de preço preciatório, relevante em matéria de concorrência.
14. No caso dos autos, procedeu-se a verificações que permitiram concluir pela exequibilidade da proposta da CONTRA-lNTERESSADA, pelo que não tem qualquer sentido invocar qualquer incumprimento de um qualquer dever de investigação, pelo que improcede a invocação de um suposto incumprimento de um qualquer dever de investigação.

A contra-interessada não contra-alegou.

O EMMP não emitiu parecer.

b) - Questões a decidir
¾ Saber se a sentença padece de nulidade por omissão de pronúncia;
¾ Se foi colocada questão nova neste recurso, que o tribunal não possa conhecer;
¾ Se é necessário o alargamento da matéria de facto ;
¾ Se o júri do procedimento estava vinculado a uma averiguação exaustiva da justificação do "preço anormalmente baixo" apresentado pela contra-interessada.

2 - Fundamentação
a) - De facto
A sentença julgou provados os seguintes factos: a)A ré publicou no Diário da Republica de 31 de Março de 2011, na Parte L, anúncio de concurso público (procedimento n° ........./2011), relativo ao concurso público que tem como objecto o "Fornecimento e montagem de bombas centrífugas para o sistema de combate a incêndio no Terminal de Navios de Cruzeiro ............". b)A prestação do adjudicatário consiste no fornecimento e montagem de duas bombas centrífugas para água salgada, de accionamento por motor diesel, para um caudal de 250 m3/hora, no fornecimento e montagem de colectores de aspiração, tubagem, órgãos de manobra, dispositivos de utilização, exteriores e acabamentos e na execução dos trabalhos de construção civil necessários, no Terminal de Navios de Cruzeiro de ..................... c)Apresentaram-se a concurso:
- P...... - Tratamento de ..............., Lda, com o preço de 285.628,04 €;
- J ............ , Lda, com o preço de 164.280,00 €;
- C ................, Lda, com o preço de 247.999,79 €;
- V ............, SA, com o preço de 240.000,01 €. d)O preço base do procedimento é de 400.000,00 €. e)O ponto 14.1 do programa de procedimento dispõe que "para efeitos do artigo 71° do CCP, o valor a partir do qual o preço total resultante de uma proposta é considerado anormalmente baixo, é de 40% ou mais inferior ao preço base fixado no Caderno de Encargos". f)Para justificar o preço da sua proposta, a contra-interessada apresentou declaração de preço anormalmente baixo, conforme cópia de fls 20. g)A pedido do júri do concurso, foram prestados esclarecimentos adicionais relativos a essa declaração. h)Após relatório preliminar e audição das concorrentes, foi elaborado relatório final de análise das propostas, no qual foi proposta a adjudicação do fornecimento à contra-interessada. i)Nesse relatório refere-se, no que concerne ao preço anormalmente baixo da proposta desta:
"No âmbito da apreciação global feita dos argumentos apresentados, o júri considerou a apresentação de um preço anormalmente baixo, como justificada.
Acresce o facto de os argumentos apresentados, ao contrário do que diz o concorrente n° 4 na sua reclamação, registarem enquadramento na alínea a) do n° 4 do artigo 71° do CCP, nomeadamente no que se refere à economia dos processos de construção e prestação de serviço. De qualquer modo, as alíneas do n° 4 do referido artigo são meramente indicativas e não taxativas, pelo que outros argumentos para a justificação de um preço anormalmente baixo poderão ser apresentados pelos concorrentes e tidos em conta pelo júri do procedimento.
Actualmente e ao abrigo do artigo 71° do CCP, e ao contrário do que o concorrente n° 4 afirma na sua reclamação ao dizer "(...) o objectivo daquela regulamentação prendia-se com a necessidade de evitar o aviltamento dos preços e a consequente degradação da indústria", abandonou-se claramente a perspectiva indicada pelo concorrente uma vez que actualmente é permitida a execução de trabalhos com um preço anormalmente baixo, desde que devidamente justificados e aceite essa justificação, o que leva à conclusão de que "(...) deixará de repugnar à Administração Pública obter o bem ou serviço objecto do contrato à injusta custa do contraente particular" (in Silva, Jorge Andrade da, Código dos Contratos Públicos, Comentado e Anotado, 2 edição 2009, Almedina, página 272).
Diz ainda o concorrente n° 4 que "o concorrente J......., Lda, não apresentou nenhum facto concreto (...), que justifique o motivo de possuir vantagens competitivas sobre os restantes concorrentes resultantes de uma maior eficiência da sua operação". No entanto, também o concorrente n° 4 não apresentou, na sua reclamação, nenhum argumento concreto, através do qual seja possível ao júri concluir no mesmo sentido que o reclamante.
Pelo contrário, o júri ao avaliar a lista de quantidades e preços de ambos os concorrentes em causa, verificou no item "Fornecimento e Montagem de duas bombas centrífugas", (itens possíveis de comparação) que a diferença de preços é de cerca de 15%, valor que no âmbito de um processo negocial se considera razoável. Este ponto comprova que a diferença de preço global de ambas as propostas (concorrente n° 2 e 4) está nos itens relativos à montagem e trabalhos acessórios, pelo que o júri entende ver-se comprovado o argumento da declaração apresentada pela J ........., Lda, de que 'A nossa empresa (...) possuir uma equipa de trabalho com larga experiência neste tipo de obras (...) ".
Em conclusão, verifica-se que o concorrente n° 2 demonstrou conhecer o local da obra e o modo como se irão executar os trabalhos (condicionalismos no acesso à zona portuária), o que lhe permite ter uma maior eficiência na execução dos trabalhos, situação esta que lhe permitiu apresentar uma proposta competitiva e com uma pequena margem de lucro de comercialização, conforme consta expressamente da declaração de preço anormalmente baixo".

b) - De Direito
(i) - Da nulidade da sentença
A recorrente alega a nulidade da sentença, por não se ter pronunciado sobre questão(ões) que suscitou. Concretamente alega que a sentença não se referiu à inaptidão dos documentos apresentados pela contra-interessada para justificar o preço da sua proposta, que não sindicou a "alegação de que os elementos constantes do procedimento não permitem fazer um juízo sobre a licitude do preço apresentado pela contra-interessada" e de que "não apreciou a alegação de que a entidade adjudicante tinha, em cumprimento do art. 71°, que investigar, ainda que de forma superficial, os elementos da proposta da contra-interessada".
O Mm.º Senhor Juiz a quo não se pronunciou, implicitamente rejeitando assim a existência de qualquer nulidade.
A diferença entre argumento e questão tem sido tão amplamente vincada na doutrina e na jurisprudência, ambas com um sentido uniforme, que causa alguma perplexidade, salvo o devido respeito, a frequente insistência em confundir argumentos com questões, precisamente o que se passa no caso vertente, o que nos dispensa de tecer mais alargadas considerações sobre tais figuras.
Dir-se-á, apenas, que saber se os documentos possuem ou não idoneidade para o fim visado, se os elementos constantes do procedimento são ou não suficientes para o juízo de credibilidade do preço apresentado pela contra-interessada, ou se o júri investigou ou não as afirmações daquela, são argumentos que podem ser esgrimidos, num ou noutro sentido, quanto ao desfecho da verdadeira questão, que consiste em determinar se devem considerar-se aceitáveis os esclarecimentos prestados quanto ao preço anormalmente baixo constante da proposta da recorrida contra-interessada. Ora, como argumentos que são, o tribunal a quo não estava obrigado a discuti-los em concreto, tanto mais que ao acolher a posição da recorrida implicitamente também os rechaçou, ou seja, não os considerou procedentes.
Não há, por isso, qualquer nulidade por omissão de pronúncia [cf. art.º 668.º, n.º 1, al. d), do CPC], sendo certo que, como infra melhor se demonstrará, a aptidão dos documentos e elementos procedimentais para atingirem a finalidade acima referida resulta das circunstâncias que se perfilam no caso sub judice, que diminui o grau de exigência quanto à amplitude e completude dos esclarecimentos prestados ao júri do procedimento. *(ii) - Da alegada ampliação do objecto da causa (questão nova colocada no recurso) e do alargamento da matéria de facto
Relega-se a pronúncia sobre estas questões para final, já que a utilidade da sua apreciação está directamente correlacionada com o desfecho da última questão. *(iii) - Da justificação do "preço anormalmente baixo" apresentado pela contra-interessada.
Antes de entrarmos na discussão jurídica da questão nuclear neste recurso, importa fazer uma advertência: é de que o recurso ao elemento histórico de interpretação, que a recorrente amplamente convoca, não é necessária nem conveniente.
Não é necessária porque a solução que se adoptará o dispensa nem é conveniente face ao regime legal actual, plasmado no CCP.
Posto isto e entrando então na apreciação de mérito, principiar-se-á por dizer que a questão central que neste recurso se coloca gira em volta do conceito indeterminado de "preço anormalmente baixo".
Tal conceito pode ser perspectivado de dois ângulos: numa óptica puramente natural, balizada por razões de ordem prática e de senso comum; ou segundo uma visão estritamente jurídica.
Vem isto a propósito do disposto no art.º 203.º da Constituição da República Portuguesa que determina que os tribunais apenas estão sujeitos à lei, consagrando uma orientação positivista do nosso direito, que contudo não dispensa uma aproximação ao jusnaturalismo, já que é pacificamente entendido que o direito também procura dar resposta às tensões da sociedade, reflectindo por isso e em grande medida a ideia de Baptista Machado, segundo o qual o Direito não pode alhear-se da "nossa condição humana e social (1)
Por isso, a interpretação do art.º 71.º do CCP, ao estabelecer o regime do preço anormalmente baixo, não exige uma visão estritamente jurídica nem impede, bem pelo contrário, que a mesma seja intermediada por considerações de ordem natural, social ou técnica.
Ora, para o senso comum um preço anormalmente baixo significa um preço que escapa a toda a lógica de mercado, irrazoável, sem qualquer justificação a não ser a que é ditada por razões de conveniência e urgência inadiáveis ou por qualquer outro motivo oculto. Representa aquilo que se entende comummente por prática de preços ao desbarato, na maioria dos casos motivada por alguma situação desesperante e urgente do oferente.
Se esta ideia do conceito em causa pudesse ser transposta, sem mais, para a contratação pública, o preço anormalmente baixo seria ditado não por um comando legal mas antes pela sua relativização com o preço que em circunstâncias normais um contraente razoável e prudente ofereceria.
É que, esta relação entre o preço anormalmente baixo e o preço base pode conduzir a uma situação em que o preço apresentado não é anormalmente baixo em função das regras de mercado mas já o é em função do procedimento concursal. Expliquemo-nos: se a entidade adjudicante, aquando da preparação do concurso e no que toca à fixação do preço base adoptar critérios excessivamente latos ou permissivos, tecnicamente pouco rigorosos ou acautelar em demasia a hipótese do concurso ficar deserto, pode estabelecer um preço que é anormalmente elevado para os padrões habitualmente vigentes em função do mercado e do tipo e modalidade de empreitada ou fornecimento em causa.
Deste modo, a construção do conceito de preço base anormalmente elevado parte necessariamente do conceito de preço normal, regular ou habitual obtido segundo os ditames da técnica e das condições do mercado, para a obra ou fornecimento em concreto.
Ora, admitindo que todos e cada um dos concorrentes pretendem que lhes seja adjudicado o contrato e obter lucro, que não há concertação entre eles, o preço razoável, normal, equilibrado de um procedimento concursal corresponde à média dos preços propostos pelos vários concorrentes, ou seja, equivale ao preço que um contraente de diligência e conhecimentos médios, colocado na posição da entidade adjudicante, estaria disposto a pagar.
Obtido o preço normal e verificando-se um desvio significativo, para mais, entre este e o preço base, temos um preço base anormalmente alto ou elevado. Tal preço implica que uma proposta com preço inferior (preço baixo) às demais propostas mas ainda assim dentro da bitola de preços que o mercado consente, sem que haja o risco de alguma imputação ou suspeita de dumping ou de degradação ou aviltamento do preço por razões financeiras, económicas, conjunturais ou outro motivo ou finalidade oculta, pode ser juridicamente qualificada como proposta de preço anormalmente baixo. Isto é, uma mera proposta de baixo preço segundo as regras de mercado pode ser encarada como proposta de preço anormalmente baixo para efeitos do procedimento concursal.
As consequências que daí derivam, quer em termos concorrenciais, quer na boa aplicação dos dinheiros públicos, impelem o intérprete a ser cuidadoso na interpretação e aplicação do conceito em causa. É que, bem vistas as coisas, um preço base anormalmente alto pode ser tão restritivo da concorrência e tão lesivo dos interesses públicos quanto o preço anormalmente baixo. Na verdade, o preço base anormalmente alto possibilita a apresentação de propostas de preço elevado, que eventualmente podem reflectir soluções técnicas que poderiam ser vantajosamente substituídas por outras menos onerosas, levando a que eventuais interessados que destas disponham sejam excluídos por mera aplicação do conceito jurídico de preço anormalmente baixo. Como é evidente, tal situação lesa a concorrência e vicia a boa gestão da coisa pública, pelo que a opção mais neutral seria, pois, considerar que o preço base a ter em conta deveria resultar da média do preço das propostas (2).
Como se sabe, não foi esse o caminho seguido pelo legislador, que optou por considerar que, no âmbito do CCP, uma proposta é de preço anormalmente baixo quando seja 40 % ou mais inferior ao preço base fixado no caderno de encargos, no caso de se tratar de um procedimento de formação de um contrato de empreitada, ou 50 % ou mais inferior àquele, no caso de se tratar de um procedimento de formação de qualquer dos restantes contratos (cf. art.º 71.º, n.º 1, do CCP, aplicável ao caso vertente já que o programa de concurso fixava um preço base) (3).
Ora, como na tarefa hermenêutica o intérprete não deixar de dar relevo ao elemento literal (art.º 9.º, n.º 2, do CC), não é possível na contratação pública substituir a vontade do legislador pela orientação que nos pareceria ser a mais correcta no modo de definir ou operacionalizar o conceito de preço anormalmente baixo. E isso tem como consequência que, embora seja possível afirmar alto e bom som que nem sempre o conceito jurídico de preço anormalmente baixo equivale ao conceito prático de preço de mercado anormalmente baixo, essa afirmação não tem efeitos concursais. O que não impede que neste contexto se possa e deva afrouxar os critérios relativos às justificações a ser apresentadas ou solicitadas, que além de serem meramente indicativos sob o prisma legal comportam ampla margem de discricionariedade, como a doutrina e a jurisprudência amplamente referem e adiante melhor se explicitará.
Dito de outro modo, se houver suficientes indícios de que o preço base do concurso foi mal calculado, não é exigível que em tais circunstâncias se imponha ao concorrente afectado uma explicitação exaustiva do preço proposto nem deve ser imposto ao júri do concurso que adopte uma postura de grande exigência no que concerne às explicações solicitadas. Cai-se, por isso, numa situação de discricionariedade técnica reforçada, que só perante a constatação de erro gravíssimo, manifestamente grosseiro ou notoriamente palmar pode ser sindicada.
Além disso, deve ter-se em consideração que nessas circunstâncias os esclarecimentos a prestar pelos concorrentes ou solicitados pelo júri não constituem tarefa fácil, já que se mostra algo difícil esclarecer um preço que é ajustado ao mercado sem cair em generalidades ou lugares comuns, que nada acrescentam à proposta que desejavelmente deve ser auto-explicativa, clara e concisa.
Doutro passo, um preço base anormalmente alto reduz ou elimina mesmo as dúvidas que poderiam pairar sobre a proposta de preço juridicamente anormalmente baixo, quanto à sua seriedade, congruência e vontade de ser cumprida.
À luz destes considerandos e volvendo os olhos para o caso sub judice, constata-se a existência de um facto indesmentível e destacado, qual seja a de todas as propostas se situarem bem abaixo do preço base fixado pelo dono da obra - € 400.000,00 - distribuindo-se uniformemente em torno de uma média de € 257.876,06 (4). Com apenas um desvio mais saliente, para menos, da proposta da contra-interessada, que em relação a esse valor apresenta um desvio, para menos, de cerca de 36%.
Sendo por isso patente a inexistência de concertação - que a existir certamente aproximaria os preços propostos do valor do preço base - esse mero factor estatístico do valor médio leva-nos a concluir de que os valores das propostas apontam no sentido do preço base ser bastante elevado e, concomitantemente, o preço da proposta da contra-interessada não significar um aviltamento do preço que justifique cautelas adicionais, designadamente quanto a eventual propósito de remeter para a fase de execução da obra os problemas que possam emergir do preço apresentado ou quanto a uma execução tecnicamente deficiente.
Como a estatuição relativa aos esclarecimentos não aponta para uma enunciação taxativa dos critérios mas antes para uma narração meramente exemplificativa, podem ser considerados outros critérios que o júri do procedimento entenda dever aplicar, sendo que no que concerne à bondade ou pertinência dos esclarecimentos prestados a Administração actua sem qualquer vinculação. Por conseguinte, quer na aplicação dos critérios, quer na aceitação ou não dos esclarecimentos prestados, a Administração - desde que respeite os princípios da adequação ao interesse público, da justiça, da imparcialidade, da boa fé, da igualdade e da proporcionalidade (5) - goza de verdadeira discricionariedade, que lhe confere liberdade de ponderação e escolha e ampla latitude no que respeita à sustentação e definição do conteúdo da decisão (6).
Resumindo:
a) Nem sempre a um preço anormalmente baixo obtido por aplicação do disposto no art.º 71.º, n.º 1, do CCP, corresponde um preço anormalmente baixo segundo a lógica do mercado;
b) Tal situação ocorre, designadamente, quando se constata que o preço base é anormalmente alto, isto é, quando é substancialmente mais elevado que a média dos preços de todas as propostas apresentadas.
c) Nessa situação, e sem embargo da aplicação do citado n.º 1 do art.º 71.º do CCP, a diferença entre o mais baixo preço proposto e o preço base não legitima uma conclusão automática de se estar perante uma proposta de preço anormalmente baixo segundo a lógica de mercado;
d) Nesse contexto a apreciação das notas justificativas e os esclarecimentos prestados pelos concorrentes deve levar em conta o preço base como critério meramente indicativo, e ainda todas as circunstâncias de ordem técnica, económica, financeira, social, de mercado e mesmo o planeamento de execução da obra ou do fornecimento, que enformam a proposta.
e) Nessa apreciação o dono da obra não está vinculado a atender exclusivamente aos critérios estabelecidos no art.º 71.º, n.º 4, do CCP, gozando ainda de ampla discricionariedade quanto à aferição da razoabilidade e pertinência dos esclarecimentos prestados, desde que respeite os princípios a que se subordina a contratação pública.
Concluindo: sendo esta a situação retratada nos autos, logo se vê que à recorrente não assiste razão na invocada violação dos art.os 57.°, n° 1, alínea d), 71.°, n.º 3 e 4, e 146.°, n° 2, alínea d), do CCP, o que conduz à inelutável consequência de se negar provimento ao recurso, embora com argumentos substancialmente diferentes dos que foram convocados na sentença.
O que prejudica, por manifesta inutilidade, a apreciação das questões do alargamento da matéria de facto e alegada questão nova invocada no recurso.

3 - Dispositivo:
Em face de todo o exposto, acordam em negar provimento ao recurso confirmando, embora com fundamentação substancialmente diferente, a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
D.n.
Lisboa, 2012-02-23
(Benjamim Barbosa, Relator)
(Sofia David)
(Carlos Araújo)


(1) J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, 12.ª Impressão, Coimbra, Almedina, pág. 215.

(2)
Este é o caminho seguido na Proposta de DIRECTIVA DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO relativa aos contratos públicos COM/2011/0896 final - 2011/0438 (COD), cujo considerando 42 diz o seguinte:
As propostas que se revelem anormalmente baixas em relação à prestação em causa podem ser baseadas em pressupostos ou práticas incorretos do ponto de vista técnico, económico ou jurídico. Para evitar eventuais desvantagens durante a execução do contrato, as autoridades adjudicantes devem ser obrigadas a pedir uma explicação do preço indicado se uma proposta apresentar preços significativamente inferiores aos dos outros proponentes. Se o proponente não conseguir dar uma explicação válida, a autoridade adjudicante deve ter o direito de excluir a proposta. Essa exclusão deve ser obrigatória nos casos em que a autoridade adjudicante tenha determinado que o preço anormalmente baixo resulta do incumprimento de legislação obrigatória da União nos domínios do direito social, laboral ou ambiental ou de disposições internacionais em matéria de direito do trabalho.
E o art.º 69.º dispõe:
Propostas anormalmente baixas
1. As autoridades adjudicantes exigem que os operadores económicos expliquem os preços ou custos cobrados quando se verificarem todas as seguintes condições:
(a) O preço ou custo cobrado é inferior em mais de 50% ao preço ou ao custo médio das restantes propostas;
(b) O preço ou custo cobrado é inferior em mais de 20% ao preço ou ao custo da segunda proposta mais baixa;
(c) Foram apresentadas pelo menos cinco propostas.
2. Caso as propostas se afigurem anormalmente baixas por outros motivos, as autoridades adjudicantes podem também solicitar as correspondentes explicações.
3. As explicações mencionadas nos n.os 1 e 2 referem-se, designadamente:
(a) Aos dados económicos do método de construção, do processo de fabrico ou dos serviços prestados;
(b) Às soluções técnicas escolhidas ou a quaisquer condições excecionalmente favoráveis de que o proponente disponha para a execução das obras, para o fornecimento dos produtos ou para a prestação dos serviços;
(c) À originalidade das obras, produtos ou serviços propostos pelo proponente;
(d) À observância, pelo menos por via de equivalência, das obrigações estabelecidas pela legislação da União no domínio do direito social e do trabalho ou do direito ambiental ou das disposições do direito internacional no domínio do direito social e ambiental constantes do anexo XI ou, quando não sejam aplicáveis, à observância de outras disposições que assegurem um nível de proteção equivalente;
(e) À possibilidade de obtenção de um auxílio estatal pelo proponente.
4. A autoridade adjudicante verifica as informações prestadas consultando o proponente. Só pode excluir a proposta quando os meios de prova não justificarem o baixo nível de preços ou custos, tendo em conta os elementos a que se refere o n.º 3.
As autoridades adjudicantes excluem a proposta caso determinem que esta é anormalmente baixa por não cumprir as obrigações estabelecidas pela legislação da União no domínio do direito social e do trabalho ou do direito ambiental ou das disposições do direito internacional no domínio do direito social e ambiental constantes do anexo XI.
5. Caso a autoridade adjudicante verifique que uma proposta é anormalmente baixa por o proponente ter obtido um auxílio estatal, a proposta só pode ser excluída unicamente com esse fundamento se, uma vez consultado, o proponente não puder provar, num prazo suficiente fixado pela autoridade adjudicante, que o auxílio em questão foi compatível com o mercado interno na aceção do artigo 107.º do Tratado. Se a autoridade adjudicante excluir uma proposta nestas circunstâncias, deve informar do fato a Comissão.
6. Quando solicitados a fazê-lo, os Estados-Membros colocam à disposição dos outros Estados-Membros, em conformidade com o artigo 88.º, as informações relacionadas com as provas e os documentos apresentados em ligação com os elementos enunciados no n.º 3.
(Negrito nosso).

(3)
Mas se o caderno de encargos não fixar o preço base, ou quando o convite ou o programa de concurso indicar, ainda que por referência ao preço base fixado no caderno de encargos, um valor a partir do qual o preço total resultante de uma proposta é considerado anormalmente baixo, o órgão competente para a decisão de contratar deve fundamentar a decisão de considerar que o preço total resultante de uma proposta é anormalmente baixo (n.º 2).

(4)
Não considerando a proposta da contra-interessada, atento o seu valor mais baixo em relação às restantes. Se entrarmos com esse valor a média ponderada do preço das propostas desce para € 234.477,04, sendo o desvio da proposta da contra-interessada de cerca de 30%.

(5)
Cf. Esteves de Oliveira, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, 1980, p. 252 ss. e Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. II, Coimbra, Almedina, 2003, p. 95

(6)
Idem, ibidem, p. 93.