Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 19 de janeiro de 2012 (proc. 8350/11)

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Sumário:

I- Nos documentos que constituem a proposta apresentada em procedimento concursal a que seja aplicável o CCP é admissível a utilização de palavras, expressões ou construções de outras línguas, que correspondam a estrangeirismos usados na língua portuguesa.
II- A utilização de tais estrangeirismos deve cingir-se ao estritamente necessário para a compreensibilidade do documento que os incorpora.
III- Neste contexto, as palavras em língua inglesa utilizadas pela recorrente no seu "Programa de Trabalhos" não consubstanciam a utilização parcial de língua estrangeira e por isso não infringem o disposto no art.º 58.º, n.º 1, do CCP nem a cláusula 13.ª, n.º 1, do Programa do Procedimento.
IV- É inválido, por violação do citado preceito e do art.º 146, n.º 2, do CCP, e bem assim dos princípios da proporcionalidade, transparência e concorrência, o ato que excluiu a proposta da recorrente, pelo que deve ser anulado.
V- Nos termos do art.º 133.º, n.º 2, al. i), do CPA, os atos consequentes de ato anulado são nulos por natureza, excepto se existir contra-interessados com legitimo proveito na sua manutenção.
VI- Por isso, em regra a anulação de um ato que excluiu uma proposta acarreta a nulidade do ato de adjudicação.
VII- A aplicação do disposto no art.º 102.º, n.º 5, do CPTA, implica que os autos forneçam elementos de facto que sejam elucidativos da evidência de uma situação de impossibilidade absoluta, os quais devem ser espontaneamente trazidos para o processo pelas partes, sob pena da sua indagação pelo Tribunal poder ser interpretada como sinal do sentido decisório da decisão que irá proferir, pondo em causa a imagem de isenção e imparcialidade que deve preservar.

 

Texto Integral:

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

1 - Relatório
a) - Dos recorrentes e do objeto do recurso
S.........& C.ª, S.A., intentou no TAF de Penafiel acção de contencioso pré-contratual contra o Município da ..................... e a contra-interessada Lena ............, S.A., pedindo a anulação do ato de exclusão da sua proposta com fundamento no uso de expressões em inglês e o consequente ato de adjudicação à contra-interessada e ser o Réu condenado a "adoptar os atos e operações materiais necessárias à reconstituição da situação que existiria se os atos em causa não tivessem sido indevidamente praticados".
Declarada a incompetência territorial daquele tribunal, foi a acção remetida para o TAF de Leiria, onde veio a ser proferida sentença que a considerou improcedente, absolvendo do pedido o réu e a contra-interessada.
Inconformada, veio a autora, ora recorrente, interpor recurso de revista per saltum para o Supremo Tribunal Administrativo, por considerar que se encontravam reunidos os respetivos pressupostos, estar em causa apenas a violação de lei substantiva ou processual, o valor da causa ser superior a três milhões de euros e o recurso incide sobre uma decisão de mérito e não estar em causa matéria de funcionalismo público ou de segurança social.
No STA, por despacho do relator foi determinado que prosseguisse neste TCA Sul, como recurso de apelação, por a decisão comportar também a apreciação de matéria de facto.

Nas suas alegações a recorrente formulou as seguintes
"Conclusões:
a) A decorrente considera que todos os pressupostos que determinam a interposição do recurso de revista per saltum se encontram preenchidos deforma manifesta no presente caso, uma vez que (a) o fundamento do recurso consiste apenas na violação de lei substantiva ou processual (artigos 150.°, n.° 2 e 151.°, n.° 1); (b) o valor da causa é superior a três milhões de euros ou indeterminável (artigo 151.°, n.° 1); (c) o recurso incide sobre uma decisão de mérito (artigo 151.°, n.° 1); e (d) o processo não versa sobre questões de funcionalismo público ou de segurança social (artigo 151.°, n.°2).
b) A decisão do Tribunal a quo veio determinar que a decisão de exclusão da proposta da Recorrente do procedimento concursal em apreço não se encontra ferida de ilegalidade, na medida em que a Recorrente apresentou um Plano de Trabalhos anexo à sua proposta cujo título do cabeçalho e algumas das suas colunas incluíam palavras ou expressões redigidas em língua inglesa: «"Selection: Whole program", "Activity Description", "Current", "Start", 'Finish"e "Month"».
c) Ou seja, a proposta apresentada pela Recorrente cumpriu com todas as formalidades legais a que se achava adstrita, encontrava-se devidamente instruída com todos os documentos exigidos e conforme com o estabelecido no caderno de encargos, e apenas estaria inquinada por no cabeçalho e nas colunas do Plano de Trabalhos conter as ditas seis palavras ou expressões redigidas em inglês.
d) Do que se entrevê da fundamentação da sentença recorrida, a decisão de exclusão da proposta da Recorrente e o subsequente ato de adjudicação da proposta da Contra-Interessada não padeceriam de vício de violação da lei por erro nos pressupostos de direito, uma vez que o a circunstância de o Plano de Trabalhos conter seis inócuas expressões em inglês tolda a percepção do mesmo pela entidade adjudicante e constituiria fundamento bastante legitimador para proceder à respetiva exclusão.
e) No entanto, é claro e evidente que o documento em causa foi redigido em português e que o mesmo permite identificar rigorosamente todos os items do diagrama de evolução do Plano de Trabalhos, em função de parâmetros temporais e de espécie de trabalhos.
f) Por outro lado, é também ostensivo que as expressões em inglês usadas pela decorrente, no contexto em que se integram, são totalmente perceptíveis e não ferem, minimamente que seja, a inteligibilidade da proposta.
g) Não deixa por isso de causar estranheza e perplexidade a posição adoptada pelo Tribunal a quo no sentido de sustentar a legalidade da decisão de exclusão da proposta da Recorrente, cumprindo, na verdade, afirmar veementemente que aquela posição viola frontalmente o disposto, em termos conjugados, nos artigos 58.°, n.° 1 e 146.°, n.°2, alínea e) do CCP, bem como os mais elementares princípios que regem (ou deviam reger) a actuação administrativa.
h) Com efeito, as expressões em inglês ínsitas no Plano de Trabalhos, porque não referidas aos termos e condições a que obedece a execução da proposta (nem tampouco aos respectivos atributos), não apresentam a virtualidade de qualificar, minimamente que seja, essa mesma proposta; em bom rigor, são até estranhas ao compromisso pré-contratual assumido pela decorrente no âmbito do procedimento concursal em apreço, uma vez que aquele se encontra integralmente redigido em língua portuguesa.
i) E igualmente evidente que os requisitos da seriedade, da firmeza e da concretização da proposta não foram minimamente abalados pela utilização de seis expressões em língua inglesa (associadas ao programa de software utilizado pela Recorrente para a elaboração das suas propostas comerciais).
j) Mas, admitindo-se que as palavras em inglês em causa não seriam aceites pela Entidade Recorrida, considerando-se por isso como não escritas, ainda assim o Tribunal a quo deveria ter determinado que o conteúdo do Plano de Trabalhos seria plenamente inteligível para a Entidade adjudicante e para todos os concorrentes, porquanto permite identificar os seus elementos essenciais, a saber, a sequência e os prazos parciais de execução de cada uma das espécies de trabalhos previstas (cfr. artigo 361,°, n.° 1 do CCP).
k) Não se compreende, até numa perspectiva de bom senso, de que não se pode afastar o julgador prudente e cauteloso, como na decisão sob censura pode ser afirmado que, sendo aquelas palavras ou expressões ininteligíveis em português, tal torna difícil ou mesmo impossível, para os intervenientes, proceder à correcta interpretação dos gráficos existentes no Plano de Trabalhos,
1) Com efeito, para o caso em apreço, o Tribunal a quo absteve-se de analisar e ponderar se, em substância, as palavras em língua inglesa ínsitas acidentalmente pela Recorrente no Plano de Trabalhos que constitui a proposta afectam, ainda que minimamente, a compreensão da mesma por parte de todos os intervenientes no procedimento concursal.
m) Verificando-se que a resposta a esta questão só poderia ser negativa, dúvidas não restam de que o disposto no artigo 58.°, n.° 1, do CCP não foi violado, desde que, conforme se torna indispensável, se tenham em atenção os princípios conformadores da actividade administrativa e os interesses fundamentais que a norma pretende acautelar, pelo que a sentença recorrida incorre em erro de julgamento, devendo consequentemente ser objecto de revogação por este Supremo Tribunal
n) Em bom rigor, o Tribunal a quo apenas lança mão do elemento gramatical ("letra da lei") para a interpretação do disposto nos artigos 58.°, n.° 1 e 146.°, n.° 2, alínea e) do CCP, sem curar de desvendar o verdadeiro sentido e alcance do texto legal através do necessário elemento lógico ("espírito da lei"), conforme os ditames das regras de interpretação das normas jurídicas genericamente plasmados no artigo 9.° do Código Civil
o) Se bem que o texto constitua o ponto de partida de toda a interpretação da lei, o Tribunal a quo deveria, na sentença, ter optado pelo sentido que melhor manifestasse a intencionalidade do legislador ao formular a exigência de que os documentos da proposta devem obrigatoriamente ser redigidos em português,
p) Mais concretamente, o que estava em causa era determinar se a utilização de seis expressões em inglês, ínsitas no cabeçalho e nas colunas do Plano de Trabalhos anexo à proposta, violavam a letra e o espírito do n.° 1 do artigo 58,° do CCP,
q) E por demais evidente que a ratio legis do artigo 58.°, n.° 1 do CCP não ê a que a sentença recorrida lhe acaba por imputar, e que se consubstancia na ideia de que o mera uso de expressões em língua inglesa nos documentos da proposta viola necessariamente o preceituado naquela norma, que determina que os documentos da proposta devem ser redigidos obrigatoriamente em língua portuguesa,
r) A ratio legis daquela norma é antes a de que todas as condições, termos, atributos ou elementos essenciais dos documentos da proposta sejam redigidos em português, de forma a que o seu conteúdo não suscite quaisquer dúvidas aos interessados - a Entidade adjudicante e os demais concorrentes no procedimento concursal (cfr., neste contexto, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos e Outros Procedimentos de Contratação Pública, Almedina, 2011, pp. 594 e 595).
s) Pelo que a sentença recorrida se encontra viciada por erro de julgamento, porquanto a respectiva fundamentação legal não encontra qualquer suporte no espírito dos comandos normativos em causa (artigo 146.°, n.° 2, alínea e), do CCP, por remissão do artigo 58.º n.° 1 do CCP), já que tais normas apenas visam - e nem poderia ser de outra forma - a exclusão de propostas que não cumpram substancialmente com o requisito de redacção dos documentos da proposta em português, o que não é manifestamente o caso.
t) Em face de tudo quanto antecede, resta acrescentar, porém, que na hipótese de se verificar ser já absolutamente impossível a reconstituição integral, no plano dos factos, da situação que existira caso o acto de exclusão da proposta apresentada pela ora Recorrente não tivesse sido ilegitimamente praticado - designadamente por virtude do avançado estado de execução, se não mesmo da execução integral, do contrato entretanto ilegalmente celebrado com a Contra-Interessada -, deve este douto tribunal convidar as partes, nos termos do artigo 102.°, n.° 5, do CPTA a acordarem, no prazo de 20 dias, no montante da indemnização a que a Recorrente terá necessariamente direito.
Termos em que se conclui requerendo a revogação da sentença recorrida, por erro de julgamento, designadamente, por violação dos artigos 1.°, n.° 4, 58.° e 146.°, n.° 2, alínea e), todos do CCP, devendo, consequentemente, ser anulados o acto de exclusão da ora Recorrente do procedimento concursal em apreço e, bem assim, o acto de adjudicação do contrato à ora Contra-Interesssada, devendo ainda a Entidade Recorrida ser condenada à adopção dos actos e operações materiais necessárias à reconstituição da situação que existiria se os actos impugnados não tivessem sido praticados.
Mais se requer, caso se revele já absolutamente impossível proceder a reconstituição, no plano dos factos, da situação que existiria se os actos impugnados não tivessem sido praticados, que este Supremo Tribunal exerça o poder oficioso que lhe cabe de convidar as partes a acordarem, no prazo de 20 dias, no montante da indemnização devida à Recorrente".

Nas suas contra-alegações, cujo teor se dá aqui por reproduzido, os recorridos pugnaram, em síntese, pela manutenção da sentença recorrida, por considerarem que as expressões em inglês usadas pela recorrente na sua proposta, desacompanhadas de qualquer tradução, contrariam o disposto no art.º 58.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos (CCP), que na sua óptica obrigatoriamente impõe, sem excepções, o uso da língua portuguesa na redacção dos documentos que constituem a proposta.

O M.º P.º não emitiu parecer.
O processo vem à conferência sem vistos (art.º 147.º, n.º 2, do CPTA).

b) - Delimitação do objeto do recurso
A delimitação objetiva do recurso é fornecida pelas conclusões da apelante (art.º 684.º, n.º 3, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (designadamente nos termos do art.º 95.º, n.º 2, do CPTA), o que no caso sub judice implica conhecer das seguintes questões:
¾ Se deve ou não ser aditada matéria de facto;
¾ Se a inclusão de expressões ou palavras em língua estrangeira nos documentos que obrigatoriamente instruem a proposta a apresentar em Concurso Público regulado pelo Código dos Contratos Públicos é motivo da sua exclusão.
¾ Se, no caso sub judice, pode haver lugar ao convite previsto no art.º 102.º, n.º 5, do CPTA.
¾ Se pode ser anulado ato consequente de ato anulado.

2 - Fundamentação
a) - De facto
Na sentença foram considerados provados os seguintes factos: a)Em 26 de Agosto de 2010, foi publicado em Diário da República, II série, o anúncio com o n.° 3846/2010, através do qual o Município da ..................... declara a abertura do Concurso Público para a celebração do contrato de empreitada de obras públicas da "Reabilitação do Edifício da Antiga Fábrica da Resinagem da .....................". b)O ponto 12 do citado anúncio e o artigo 4.° do Programa de Procedimento daquele Concurso Público fixam que o critério de adjudicação da empreitada é o do mais baixo preço. c)No programa de procedimento, no seu artigo 11.°, com o título Proposta, prescreve no seu n.°2, para além do mais que " - A proposta é constituída pelos seguintes documentos:
(...) d) Plano de Trabalhos, tal como definido no artigo 361.° do Código dos Contratos Públicos,
incluindo:
i) Memória descritiva e justificativa;
ii) Diagrama de barras, ilustrando o desenvolvimento das actividades a partir da consignação da obra, com escala temporal de uma semana;
iii) Plano de mão-de-obra, com os efectivos mensais, expressos em efectivos por cada categoria profissional, ao longo do prazo de execução da empreitada;
iv) Plano de equipamentos a afectar à empreitada (...)" (sublinhado nosso).
(Cfr. Documento n.° 1 junto com a P.I). d)O Artigo 13.° do mesmo Programa de Procedimento, com o título Apresentação e abertura das propostas, estatui no seu n.° 1 - wt Os documentos que constituem a proposta devem ser apresentados directamente na plataforma electrónica www.compraspublicas.com e obrigatoriamente redigidos em língua portuguesa (...),, (Cfr. Documento n.° 1 junto com a P.I). e)A Autora "............ & CA., SA", tal como outros interessados, apresentou a sua proposta com vista à realização da empreitada mencionada em A (Cfr. Volume XXVII do PA). f)Apresentaram-se ao concurso referido em A, as empresas seguintes:
1. LENA ................., SA
2. H............... - CONSTRUÇÕES, SA
3. MANUEL ........................., SA
4. O............ - OBRAS ......................, SA
5. ANÍBAL ..................., LDA
6. L............. - SOCIEDADEDE ................., LDA
7. A. ....................., SA
8. SOCIEDADE ....................., SA
9. VIDAL, ............ & ............, LDA
10. CENTRO-.............................., SA
1 1. T...............- CONSTRUÇÕES, SA
12. CONSTRUÇÕES ..................., LDA
13. E.............-EMPRESA .............., SA
14. T...............-CONSTRUÇÕES ............................., LDA
15. C........... & .................., SA
16. CONSTRUTORA .............., SA (PONTEVEDRA) REPRESENTAÇÃO EM PORTUGAL
17. C................... CONSTRUÇÕES, SA
18. B............... - SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES, SA
19. SÁ ................. & ..........., SA
20. C............. - ENGENHARIA .................., SA
21. C........... CONSTRUTORES, SA
22. E................ - OBRAS .............................., SA
23. LÚCIO ........................... & ........., SA
24...S..................... & CA, SA
25. C.......... E ......... - CONSTRUTORES .............. (Cfr. doc.n.° 1 da P.I.). g)O Plano de Trabalhos anexo à Proposta da Autora contém as palavras e expressões em língua inglesa: «"Selection: Whole program"; "Activity Description"; "Current; Start";" Finish" e" Month"», desacompanhada de tradução em língua portuguesa. (Cfr. Volume XXVII do PA e Doc.n.°3 da PI). h)No dia 07 de Janeiro de 2011, reuniu o Júri do Procedimento, para análise das propostas apresentadas com vista à execução da empreitada respeitante à "Reabilitação do Edifício da Antiga Fábrica de Resinagem da ....................."", ficando a constar do respectivo Relatório Preliminar, no que à Autora diz respeito o seguinte:
«h) O concorrente n.° 24 "S................ & CA, S.A " apresenta o plano de trabalhos anexo à sua proposta parcialmente redigido em língua inglesa, nomeadamente: "Selection: Whole program", "Activity Description", "Current, Start", " Finish" e" Month", contrariando o exigido no n.° 1 do artigo 13.°do Programa de Procedimentos, pelo que se propõe a sua exclusão ao abrigo do disposto no n.° 1 do artigo 58°por remissão da alínea e) do n.°2 do artigo 146°, ambos do CCP». (Cfr. Doc. n.° 2 da P.I.). i)No Relatório Preliminar supra, o Júri admitiu a proposta da concorrente "LENA ......................., SA ", propondo a sua ordenação em primeiro lugar e, consequentemente, propõe a adjudicação da empreitada Reabilitação do Edifício da Antiga Fábrica de Resinagem da ..................... a este concorrente, pelo valor de 3.975.000,00 (Três milhões Novecentos e Cinco Mil Euros), acrescido de IVA à taxa legal em vigor por ser a proposta com mais baixo preço (Cfr. Doc. n.°2 da P.I.). j)A Autora, notificada do relatório de análise das propostas supra referido apresentou reclamação, em sede de audiência prévia, concluindo: " parece claro que a proposta de acto de exclusão sob pronúncia do Concorrente n.° 24, ora Requerente, é manifestamente ilegal, devendo por isso proceder-se à reformulação do Relatório Preliminar e admitir-se a respectiva proposta, com todas as consequências legais " (Cfr. Doc. n.° 4 da P.I.). k)No dia 04 de Fevereiro de 2011, reuniu o Júri do Procedimento, tendo elaborado o competente Relatório Final, no qual deliberou não aceitar o pedido de exclusão do concorrente n.° 1 - " Lena ................, SA", formulado pela Autora, mantendo as deliberações anteriores, tomadas em sede de Relatório Preliminar, não alterando as propostas de exclusão, bem como a de ordenação das propostas admitidas (Cfr. Doc. n.°5 da P.I.). l)O Júri mantém pois no Relatório Final a proposta de adjudicação da empreitada Reabilitação do Edifício da Antiga Fábrica de Resinagem da ..................... ao concorrente n.° 1 - " Lena ......................., SA", pelo valor de 3.975.000,00 (Três milhões Novecentos e Cinco Mil Euros), acrescido de IVA à taxa legal em vigor por ser a proposta com mais baixo preço. (Cfr. Doc. n.°5 da P.I.). m)No dia 15 de Fevereiro de 2011 foram disponibilizados na respectiva Plataforma Electrónica: o Relatório Final, a decisão de adjudicação, os documentos de habilitação e caução, sendo nesta data todos os interessados notificados de tais documentos. (Cfr. Doc.n.°6 da P.I e Doc. n.° 1 das Contestações). n)A Autora foi notificada, através de e-mail remetido pela Plataforma Electrónica, que todos os concorrentes foram na data supra referida notificados do aviso criado com os anexos respectivos (Cfr. Doc.n.°2 da Contestação do Réu Município). o)A P.I. relativa aos presentes autos de contencioso pré-contratual deu entrada em Tribunal (TAF de Penafiel) no dia 11 de Março de 2011, conforme carimbo aposto no rosto da referida peça processual. p)A proposta da contra-interessada incluída um documento intitulado "Lista de equipamento a utilizar em obra", contendo as seguintes duas expressões: "ID" e "Resource Name" (1).

b) - De Direito:
A recorrente insurge-se contra a sentença recorrida por entender que a exclusão da sua proposta por decisão fundamentada do Júri do Procedimento violou o disposto no n.° 1 do artigo 58.°, por remissão da al. e) do n.° 2 artigo 142.°, ambos do Código dos Contratos Públicos, e também o art.º 13.º, n.º 1, do Programa do Concurso, no seu n.° 1 do artigo 13.°, na medida em que a interpretação que deles foi feita e que a sentença acolheu é manifestamente ilegal, porquanto resulta de mera interpretação formal e literal dos referidos preceitos legais, ignorando a ratio e teleologia que lhes está subjacente, convertendo o acto impugnado numa decisão manifestamente desproporcionada e contrária ao direito.
Para a recorrente o plano de trabalhos que apresentou apenas contém, no cabeçalho e nas colunas, seis expressões ou palavras redigidas em inglês, expressões essas que são facilmente perceptíveis e que não interferem com a compreensibilidade do conteúdo do documento, e cuja utilização se deve a lapso resultante do uso de um programa informático, em que o idioma inglês é assumido por defeito.
Na perspetiva da recorrente o ato impugnado padece do vício de violação da lei por não terem sido observados os princípios da prossecução do interesse público, da igualdade de tratamento e da proporcionalidade.
Por outro lado a recorrente entende que a matéria de facto deve ser ampliada, a fim de incluir factos relacionados com a proposta da contra-interessada e o uso, nesta, de expressões em inglês, no que se considera assistir-lhe razão, motivo pelo qual se aditou o facto especificado sob a alínea p), por revelar ter algum interesse em face das várias soluções plausíveis de direito.
Quanto ao cerne da questão:
De harmonia com o disposto no art.º 58.º, n.º 1, do CCP, os documentos das propostas devem ser redigidos em língua portuguesa, sob pena de exclusão, determinada pelo art.º 146.º, n.º 2, al. e), do mesmo diploma.
A ratio da norma não é, certamente, a de permitir a apreensão do conteúdo dos documentos por quem não tenha especiais conhecimentos em língua estrangeira, porque a ser assim não faria sentido a excepção relativa aos procedimentos concursais referidos no n.º 5 do art.º 58.º do CCP.
A exigência resulta, na verdade, do princípio geral de direito público, "tão óbvio que o CPA nem o explicitou" (2), consagrado de resto no art.º 11.º, n.º 3, da CRP, de que em qualquer procedimento que corra perante autoridade administrativa deve obrigatoriamente ser usada (salvo, obviamente, as excepções que a lei prevê), a língua portuguesa.
Ora, nesta é frequente e vulgar o uso, mesmo em atos e documentos oficiais, de palavras, expressões ou construções próprias de línguas estrangeiras (estrangeirismos), que sendo genericamente aceites passam a ser registados como empréstimos linguísticos em obras lexicográficas e a integrar a língua portuguesa (3), podendo até dar origem a neologismos.
Manuel Rodrigues Lapa refere-se aos estrangeirismos nestes termos: "Os povos que dependem económica e intelectualmente de outros não podem deixar de adoptar, com os produtos e ideias vindas de fora, certas formas de linguagem que lhes não são próprias. O ponto está em não permitir abusos e limitar essa importação linguística ao razoável e necessário. Contido nestes limites, o estrangeirismo tem vantagens: aumenta o poder expressivo das línguas, esbate a diferença dos idiomas, tornando-os mais compreensivos, e facilita, por isso mesmo, a comunicação das ideias gerais. Uma coisa é necessária, quando o estrangeirismo assentou já raízes na língua nacional: vesti-lo à portuguesa" (4).
Daí que palavras ou expressões técnicas de uso corrente, bem como as palavras, expressões ou construções de outras línguas que com regularidade são utilizadas na língua portuguesa, devam considerar-se aceitáveis na redacção dos documentos que constituem a proposta, porque não desvirtuam a compreensibilidade do texto, mesmo para quem não domine a língua de origem do palavra ou expressão utilizada. Posto que a sua utilização se cinja ao estritamente necessário não há qualquer razão para se afirmar que foi usada língua estrangeira, ainda que parcialmente.
De facto, o uso de uma língua estrangeira implica o predomínio de um raciocínio no contexto dessa língua, o que não sucede com o uso de estrangeirismos. Uma frase pode ser um indicador do recurso a uma língua estrangeira, mas não o será se corresponder a uma expressão ou construção estrangeira de uso corrente na linguagem. Mas seguramente um parágrafo em língua estrangeira não é admissível num documento da proposta, porque neste caso é manifesto que se está perante a utilização parcial de uma outra língua que não a portuguesa.
Por conseguinte não é razoável a inexorável e fulminante exclusão de uma proposta fundada no simples uso de palavras isoladas em língua estrangeira. A observância dos princípios da proporcionalidade, transparência e concorrência, devidamente conjugados entre si e transversais ao Código dos Contratos Públicos, impõem que seja outra a opção a tomar.
E neste aspeto têm sido alvitradas diferentes soluções.
Nos acórdãos do TCA Norte de 26-01-2006 (5) e do TCA Sul de 28-04-2011 (6), defendeu-se que o uso de palavras ou expressões em língua estrangeira em documentos constituintes da proposta ditaria a exclusão desta, a não ser que fossem acompanhados da respetiva tradução.
Porém, a exclusão por falta de tradução significa uma interpretação extensiva que a letra da norma não consente e que nitidamente se afasta do pensamento do legislador, que certamente teria usado outra fórmula gramatical caso tivesse cogitado tal hipótese. E por isso, como justamente salientam Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira (7) a sua falta não pode ser causa de exclusão da proposta.
Aliás, nesta visão das coisas nada impediria então que uma proposta fosse redigida, total ou parcialmente, em língua estrangeira. Questão diferente será a do programa do concurso conter, sob permissão do art.º 132.º, n.º 4, do CCP, uma exigência específica de tradução.
Uma outra solução - que é aquela que a recorrente defende - passaria pela desconsideração das palavras ou expressões estrangeiras, que seriam tidas por não escritas, valendo o documento pela parte sobrante. E se esta fosse inteligível por si mesma, nenhuma razão existiria para a exclusão da proposta.
É uma tese algo sedutora mas que tem o inconveniente de poder restringir a concorrência, designadamente nos casos em que uma simples palavra considerada não escrita compromete a inteligibilidade ou compreensão de um documento. Exemplo que se pode colher na situação sub judice: a eliminação da palavra "Month" (mês), que encima a coluna de tempo constante do programa de trabalhos apresentado pela recorrente, torna incompreensíveis as referências que dessa coluna constam. Os números 1 a 43 referem-se a dias, semanas, meses? Se no esforço de interpretação do documento nos abstrair-mos de qualquer dado adicional do procedimento concursal, isto é, se nos colocarmos perante o documento como um destinatário que nada conhece do concurso, é evidente que se torna impossível saber qual a medida de tempo utilizada.
O mesmo se diga com as palavras "Start" e "Finish". Eliminadas, fica sem se saber se as atividades, por exemplo de alvenarias, se iniciam em 25ABR11 e terminam em 08MAI11, ou se pelo contrário se realizam apenas nestas duas datas.
Logo, esta tese, se em certos casos pode fornecer uma solução satisfatória, não é genericamente aplicável e por isso é também de afastar.
Assim sendo, a solução que, para nós, melhor se compagina com o estatuído no art.º 58.º, n.º 1, do CCP e com o uso generalizado na língua portuguesa de estrangeirismos, é a de aceitar o documento que os contém desde que a sua utilização tenha sido justificada pela melhoria da expressividade do texto ou por razões de natureza técnica, sejam necessários e compreensíveis, e se cinjam ao estritamente necessário sem dar azo a uma profusão de termos ou palavras estrangeiras.
No caso em apreço, a autora afirma que o uso das seis expressões em inglês se ficou a dever a lapso informático, já que não teve qualquer intenção de as usar, afirmação que não foi contrariada pelos recorridos. De todo o modo, das seis expressões ou palavras usadas apenas as palavras "Start", " Finish" e "Month" são imprescindíveis para a compreensão ou inteligibilidade do documento. As demais são perfeitamente dispensáveis, sem que a sua falta impeça ou obstaculize a percepção. Ora, o uso daquelas palavras na língua portuguesa está de tal modo disseminado que não é necessário tradução para que os conceitos que representam sejam imediatamente apreendidos. Sublinhe-se, por exemplo, que a palavra "start" é, v.g., comummente utilizada em equipamentos das mais variadas origens, enquanto "finish" e "month" são imediatamente conotadas com o equivalente na língua portuguesa, "fim" ou "termo" e "mês".
Aliás, é este raciocínio que permite que se diga que as expressões em inglês utilizadas pela contra-interessada na lista de equipamentos ("ID" e "Resource Name") - que por expressa imposição do programa faz parte do plano de trabalhos (que de resto contém a expressão "Jet Grouding") - não violam também o disposto no citado preceito.
Resumindo:
¾ Nos documentos que constituem a proposta apresentada em procedimento concursal a que seja aplicável o CCP é admissível a utilização de palavras, expressões ou construções de outras línguas, que correspondam a estrangeirismos usados na língua portuguesa.
¾ A utilização de tais estrangeirismos deve cingir-se ao estritamente necessário para a compreensibilidade do documento que os incorpora.
¾ Neste contexto, as palavras em língua inglesa utilizadas pela recorrente no seu "Programa de Trabalhos" não consubstanciam a utilização parcial de língua estrangeira e por isso não infringem o disposto no art.º 58.º, n.º 1, do CCP nem a cláusula 13.ª, n.º 1, do Programa do Procedimento.
¾ É inválido, por violação do citado preceito e do art.º 146, n.º 2, do CCP, e bem assim dos princípios da proporcionalidade, transparência e concorrência, o ato que excluiu a proposta da recorrente, pelo que deve ser anulado.
¾ Consequentemente, padece de erro de julgamento a sentença recorrida que decidiu o contrário. *Para concluir resta apenas abordar duas questões: a primeira se deve ser declarada a impossibilidade absoluta de execução do julgado anulatório; a segunda se podem ser anulados os atos consequentes do ato anulado (exclusão da proposta da recorrente).
Começando por este segundo problema dir-se-á que o art.º 133.º, n.º 2, al. i), do CPA comete de nulidade (e não anulabilidade) os atos consequentes de ato anulado, excepto se existir contra-interessados com legitimo proveito na sua manutenção. No caso presente o ato de adjudicação é consequência do ato de exclusão, na medida em que o seu conteúdo foi determinado por aquele.
Portanto, não só o ato de adjudicação não necessita de uma declaração de anulação, por ser nulo por natureza, como a sua eventual manutenção depende da demonstração do interesse da contra-interessada "Lena Construções Atlântico, S.A.", demonstração que não está feita nos autos e que exige mais larga indagação em matéria de facto.
No que se refere à questão da aplicação do art.º 102.º, n.º 5, do CPTA, os autos também não fornecem quaisquer elementos de facto que sejam elucidativos da evidência de uma situação de impossibilidade absoluta, designadamente a execução em fase irreversível da empreitada objeto do concurso público em apreço.
Entende-se que tais elementos devem ser espontaneamente carreados para o processo pelas partes ou pelo menos pela parte a quem aproveitam, sob pena da sua indagação pelo Tribunal poder ser interpretada como sinal do sentido decisório da decisão que irá proferir, com as consequências gravosas, que facilmente se advinham, para a imagem de isenção e imparcialidade que aquele deve preservar.
Por conseguinte, não é possível convidar as partes a acordarem uma indemnização, subsistindo apenas o caminho da anulação do ato que excluiu a proposta da recorrente e da condenação do requerido à prática dos atos e operações materiais necessárias à integral execução dessa anulação (obviamente, sem prejuízo de eventual inexecução por causa legítima).

III - Dispositivo
Nos termos expostos acordam em:
a) Conceder provimento ao recurso;
b) Revogar a sentença recorrida;
c) Anular o ato impugnado, de exclusão da proposta da recorrente;
d) Condenar o réu a praticar os atos e operações materiais necessárias à integral execução do precedente segmento decisório.
Custas pelos recorridos.
Lisboa, 2012-01-19
(Benjamim Barbosa, Relator)
(Sofia David)
(Carlos Araújo)

(1) Aditado.
(2) Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e Outros Procedimentos de Contratação Pública, Coimbra, Almedina, 2011, p. 593.
(3) São inúmeras as palavras de origem estrangeira de uso corrente na linguagem falada e escrita portuguesa, como se pode constatar no Dicionário de Estrangeirismos do Portal da Língua Português, onde se escreveu o seguinte:
"A ortografia da língua portuguesa é determinada por regras específicas, enunciadas em acordos ortográficos. Deste modo, no inventário do léxico não são esperadas palavras que terminem em -ing (meeting) ou -oir (noir). No entanto, muitas dessas palavras de outras línguas, os empréstimos, são utilizadas com regularidade em textos oficiais em língua portuguesa e registadas em obras lexicográficas do português.
Este dicionário fornece uma lista que se pretende o mais completa possível de todos os empréstimos não adaptados ortograficamente (isto é, que não respeitam a grafia do português, ou a relação entre grafia e pronúncia) e que se encontram registados na base de dados. Para todas estas palavras é indicada a categoria, a língua de origem e o domínio a que pertencem.
(cf. http://www.portaldalinguaportuguesa.org/?action=estrangeirismos [em linha] [cons. 04-01-2012].
(4) Citado no Portal Ciberdúvidas da Língua Portuguesa: http://www.ciberduvidas.pt/idioma.php?rid=2082 [em linha] [cons. 04-01-2012].
(5) Proc. n.º 0980/05.0BEBRG
(6) Proc. n.º 07261/11
(7) Ob. cit., p. 594