Sumário:
I. Perante a detectada falta de uma assinatura necessária para obrigar a candidata subscritora da aceitação do caderno de encargos de concurso público, deveria o júri tê-la convidado a remediar a irregularidade, sendo a imediata exclusão da proposta uma decisão desproporcionada;
II. Não tendo sido advertida a irregularidade nos momentos oportunos, a celebração do respectivo contrato, de cujo conteúdo faz parte o caderno de encargos, assinado pelos legais representantes da dita sociedade candidata, acaba por sanar a irregularidade que foi cometida.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
Relatório
C... Ldª. - com sede no Parque Industrial ..., em Coimbra - recorre da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal [TAF] de Coimbra - em 24.06.2010 - que condenou a Administração Regional de Saúde do Centro [ARSC] a excluir a sua proposta do concurso público para adjudicação da empreitada de execução das novas instalações da ARSC, IP, 2ª fase - a sentença recorrida foi proferida no âmbito de processo urgente do contencioso pré-contratual, no qual a autora J... Ldª demanda a ARSC e a C..., pedindo ao tribunal que anule o relatório preliminar e os actos subsequentes do concurso público em causa, de forma a excluir do mesmo a concorrente C... e a empreitada lhe ser adjudicada a ela.
Conclui assim as suas alegações:
1- A recorrente impugna a decisão do tribunal a quo que considera procedente a alegação da ilegalidade do relatório final do procedimento do concurso público, por violação dos artigos 57º nº alínea a) e nº4 e 146º nº2 alínea d) todos do CCP;
2- Considera o tribunal a quo que o facto da declaração modelar de aceitação do caderno de encargos, integrante da proposta da recorrente, estar assinada apenas por um gerente, quando, resulta do pacto social da mesma, que a sociedade só se obriga com assinatura de 2 gerentes, obriga a excluir a recorrente do concurso público, e da classificação final a proposta apresentada pela mesma;
3- Entende assim o tribunal a quo que há uma irregularidade nos documentos integrantes da proposta da C...;
4- A ré ARS, IP, na sua contestação rejeita a tese defendida pela demandante, e que veio a ser sufragada na decisão recorrida;
5- Face ao sentido da sentença recorrida, crê a ora recorrente que como ré e contra-interessada nos autos, e podendo a sentença recorrida produzir efeitos imediatos e directos na sua esfera jurídica, lhe assiste legitimidade para apresentar este recurso;
6- Salvo o devido respeito, é na identificação/concretização desta irregularidade e no entendimento que faz da contestação da mesma pela ré ARS, IP, que o tribunal a quo erra manifestamente na apreciação da prova documental dos autos, nomeadamente, do processo administrativo junto pela ré ARS, e, com a sentença recorrida foram violadas normas, e foram deficientemente interpretadas;
7- Não existe qualquer irregularidade nos documentos integrantes da proposta da C..., especificamente na declaração modelar de aceitação do caderno de encargos, mesmo que assinada apenas por um gerente;
8- É verdade que a sociedade comercial em causa apenas se obriga com duas assinaturas;
9- Mas, ao contrário do defendido pelo tribunal a quo, esta questão não se põe no caso sub judice, se atendermos à forma como a proposta foi apresentada e a quem a subscreveu;
10- A recorrente apresentou a sua proposta em estrita obediência ao artigo 170º do CCP;
11- O artigo 57º nº4 do CPP, prevê que a declaração mencionada na alínea a) do seu nº1 «deve ser assinada pelo concorrente ou por representante que tenha poderes para o obrigar»;
12- A concorrente é uma sociedade comercial, tendo poderes para a representar os dois sócios-gerentes;
13- Porém, nos termos do artigo 1157º do Código Civil, pode a dita sociedade constituir mandatário para a representar em um ou mais actos com valor jurídico;
14- O que fizeram por procuração subscrita em 22.05.2009, em que constituem uma procuradora para, em nome e representação da sociedade, assinar plataformas electrónicas de contratação utilizando para o efeito o certificado digital qualificado;
15- Ora, a candidatura da recorrente foi apresentada e assinada digitalmente, pela procuradora, com poderes para o acto [R...] com recurso a certificado digital homologado por entidade competente [certificado digital que consta do processo administrativo];
16- Substituindo a assinatura digital, a assinatura manuscrita, não restam dúvidas que este requisito legal foi cumprido pela recorrente;
17- E é ao constatar que a candidatura apresentada se encontrava assinada digitalmente através de certificado digital validado por entidade credenciada, que a ré ARS, e bem, considera que o facto da declaração modelar de aceitação do cadernos de encargos estar assinada apenas por um gerente da recorrente, não constitui uma irregularidade ou um vício que obste à apreciação da candidatura da recorrente;
18- Na verdade, resulta da lei que a assinatura digital aposta na candidatura, afasta a necessidade de assinatura manuscrita em qualquer dos documentos que a compõem, supra referidos;
19- Estamos assim perante um excesso de forma, e não face a um vício de forma;
20- Nos termos do artigo 693º-B do CPC, «As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 524º, no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância e nos casos previstos nas alíneas a) a g) e i) a n) do nº2 do artigo 691º»;
21- Entende a recorrente que o sentido da decisão recorrida impõe a junção de declaração de entidade competente que homologou o certificado digital mediante a outorga da supra referida procuração;
22- Ao assim não entender, a sentença recorrida violou os artigos 57º nº1 alínea a) e nº4 e 146º nº2 alínea d) todos do CCP.
Termina pedindo a revogação da sentença recorrida, com todas as consequências legais.
A J... contra-alegou, concluindo assim:
1- A recorrente e a ré ARSC já celebraram o contrato relativo ao presente concurso, pelo que a atribuição de efeito suspensivo ao recurso produzirá uma situação de facto consumado;
2- Deve, por isso, ser alterado o efeito do recurso, passando o mesmo a ser de efeito meramente devolutivo, nos termos do artigo 143º nº3 do CPTA;
3- Caso assim se não entenda, deve ser ordenado à recorrente e à ré ARSC que tomem as providências necessárias a evitar a produção de quaisquer danos à recorrida;
4- O documento junto pela recorrente é inadmissível, pois devia ter sido junto, no máximo, até ao encerramento da discussão em primeira instância, violando assim os artigos 523º nº2, 524º e 693º-B, todos do CPC;
5- A recorrente invoca erro na apreciação da prova documental dos autos, nomeadamente do processo administrativo junto aos mesmos;
6- A recorrente faz apenas um apelo genérico à prova documental constante dos autos, não especificando os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa;
7- A recorrente junta um documento que não é superveniente nem destrói a prova em que a decisão assentou;
8- O recurso deve por isso ser rejeitado por violar o disposto nos artigos 685º-B nº 1 e 712º nº1 do CPC;
9- A declaração de aceitação do caderno de encargos entregue pela recorrente na sua proposta de concurso não se encontra assinada por quem tem poderes para obrigar a sociedade, conforme exigido pelo artigo 57º nº4 do CCP;
10- A outorga, em procuração, de poderes para "assinar em plataformas electrónicas de contratação" não sana tal vício, por força do disposto no artigo 258º do Código Civil;
11- Isto porque a obrigação de assinar é expressa, não podendo ser substituída por certificado digital e os poderes referidos são para cumprimento do disposto no artigo 62º e 170º do CCP e não do artigo 57º do CCP;
12- De qualquer modo, não tendo a recorrente provado os poderes outorgados, por meio documental, será tal argumentação improcedente, pois o único documento válido, constante do processo, é a certidão do registo comercial da recorrente, não existindo outros que imponham uma decisão diversa;
13- Em conformidade, a decisão da primeira instância não padece de qualquer vício ou incongruência, ou erro de facto ou direito, devendo ser mantida, com todas as consequências legais;
14- A recorrente introduz factos novos extemporâneos, sem suporte probatório, divergindo da sentença recorrida, e apresentando elementos probatórios inadmissíveis, alegando normas legais opostas à realidade;
15- A recorrente deduz uma oposição cuja falta de fundamento não ignora, alterando a verdade dos factos e fazendo dos meios processuais uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir objectivo ilegal e protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão;
16- A recorrente litiga de má-fé, devendo como tal ser condenada, bem como em multa e indemnização condignas, nos termos legais.
Termina pedindo a confirmação da sentença recorrida.
Sobre as questões suscitadas nas contra-alegações [efeito do recurso, inadmissibilidade de junção do documento apresentado com as contra-alegações, e litigância de má-fé] foi ouvida a recorrente, que se pronunciou pela sua improcedência.
O Ministério Público pronunciou-se a favor do não provimento do recurso jurisdicional [artigo 146º nº1 do CPTA].
De Facto
São os seguintes os factos considerados provados na sentença recorrida:
1- Em 16.12.2009 a ré Administração Regional de Saúde do Centro [doravante designada por ARSC] publicou em Diário da República o anúncio de procedimento de contratação pública nº5642/2009 [cujo teor consta do documento nº1 da petição inicial, que aqui se dá como reproduzido]; 2- O referido procedimento consiste num concurso público de empreitada de obras públicas cujo objecto é a realização da "Empreitada de execução das novas instalações da ARSC, IP - 2ª fase", conforme programa de concurso e caderno de encargos [juntos como documentos 2 e 3 da petição inicial, e aqui se dados como reproduzidos];
3- O programa do concurso determinava, além do mais, que a adjudicação seria feita à proposta economicamente mais vantajosa, atendendo-se aos seguintes factores por ordem de importância:
1º Preço: 70%
2ª Valor técnico da Proposta: 30%.
4- O ponto 8.4 do programa do concurso tem o seguinte teor:
"8 - Documentos da proposta
Conteúdo obrigatório da proposta:
[...]
8.4. Programa de trabalhos, tal como definido no artigo 361º do CCP, incluindo plano de trabalhos [com indicação das principais actividades a desenvolver, seu escalonamento ao longo do prazo, mencionando expressamente quais os períodos de suspensão nele incluídos, plano de mão de obra indicando discriminadamente o número de homens-dia de cada profissão e a sua distribuição ao longo do prazo] e plano de equipamento discriminando as máquinas e equipamentos que serão utilizados na execução dos trabalhos, especificando as suas características e datas em que estarão na obra em condições operacionais;"
5- A autora e a contra-interessada C... Lda, entre outros concorrentes, apresentaram, as suas propostas;
6- De folhas 137 a 139, 140 e 141 do PA figuram, respectivamente, os documentos que a C... apresentou como integrantes da sua proposta e denominou "programa de trabalhos", "plano de mão de obra" e "plano de equipamento", que aqui se dão como reproduzidos;
7- De folhas 146 a 155 e 158 a 164 do PA figuram, respectivamente, os documentos que a autora apresentou como integrantes da sua proposta e denominou como "programa de trabalhos", "plano de mão de obra" e "plano de equipamento", que aqui se dão como reproduzidos;
8- A folha 157 e 158 do PA consta um documento que a autora apresentou como integrante da sua proposta e denominou como "plano de [Homems-Dia] Semana", que aqui se dá como reproduzido;
9- A proposta da C... apresentava um desfasamento entre o Programa de Trabalhos e o Plano de Mão-de-Obra, de 10 dias;
10- Em data indeterminada, o júri comunicou aos concorrentes o relatório preliminar [cuja cópia é documento 4 da petição inicial e se dá como reproduzido] contendo o projecto de classificação dos concorrentes em que a contra-interessada C... figurava em 1º lugar e a autora em 2º;
11- A autora apresentou então, em 08.03.2010, a sua pronúncia sobre o relatório preliminar, nos seguintes termos:
Assunto: Pronúncia ao Relatório Preliminar do Concurso Público da Empreitada de execução das novas instalações das instalações da ARSC, IP - 2ª Fase.
[...]
- Em relação à proposta do concorrente C..., Lda." pretendemos referir o seguinte:
1) O Plano de Trabalhos da C... apresenta em relação à J... menos detalhe e falta de coerência na relação de trabalhos:
a) A C... aplica pinturas praticamente no final da 2ª fase das instalações eléctricas, Ited [sic] e elevadores, o que, na nossa interpretação não nos parece correcto porque assim não será possível aplicar devidamente interruptores e tomadas, visto que estes deverão ser aplicados depois das pinturas para garantir o melhor acabamento.
O levantamento de alvenarias é feito no final da obra, pelo que implicará a não execução de possíveis cablagens necessárias nessas paredes.
2) Existe um desfasamento entre a duração das actividades no Plano de Trabalhos e no Plano de Mão de Obra, pelo que os trabalhos descriminados no Plano de Mão de Obra têm maior duração do que no Plano de Trabalhos, chegando a verificar-se diferenças superiores a 14 dias entre as mesmas tarefas.
3) Não existe a discriminação no Plano de Mão-de-obra do nº de homens-dia por profissão, verificando-se que existe somente o somatório do nº de homens-dia para todas as profissões [este documento é exigido no ponto 8.4 do Programa de Concurso desta empreitada].
4) No Plano de Equipamento não são descriminados os trabalhos a que cada equipamento está afecto.
5) Não existe menção no Programa de Trabalhos aos períodos de Suspensão da Obra [esta menção é exigida no ponto 8.4 do Programa de Concurso desta empreitada].
6) Existe um desfasamento entre o Plano de Trabalhos e o Plano de Pagamentos, pelo que o concorrente se propõem a facturar alguns trabalhos em meses cujos trabalhos estão parados no Plano de Trabalhos [os trabalhos de instalações estão parados nos meses 2, 3, 4, 5 e 6 no Plano de Trabalhos enquanto que no Plano de Pagamentos se pretende facturar os trabalhos de instalações durante esses meses].
7) A lista de Preços unitários não discrimina os preços por mão-de-obra e por material, tal como foi fornecido aos concorrentes nas medições contratuais.
Assim conforme o exposto, pedimos a verificação destas incongruências e consequentemente que se tome as medidas correctas. Notar bem que no ponto 3 e 5 desta pronúncia se referem falhas na proposta da C... que violam a alínea c) do nº1 do artigo 57º do Código dos Contractos Públicos, bem como nos pontos 2, 4 e 6 se referem falhas na proposta da "C..." que violam o artigo 361º do Código dos Contactos Públicos.
A violação da alínea c) do nº1 do artigo 57º bem como a violação do artigo 361º do Código dos Contractos Públicos implicam a exclusão da proposta.
Com os melhores cumprimentos;
Coimbra, 8 de Março de 2010
12- Em data desconhecida, mas seguramente posterior a 08.03.2010 e anterior a 29 seguinte [ver a folha 75], o júri elaborou e comunicou aos concorrentes o relatório final do procedimento [cuja cópia consta a folha 75-verso e seguintes dos autos, integrando o documento 6 da petição inicial] mantendo tudo o que preconizara no preliminar, sem fazer qualquer menção à pronúncia da autora, nem ao por ela alegado;
13- Conforme o pacto social, ao tempo em que a C... apresentou a sua proposta eram necessárias as assinaturas de dois gerentes para a obrigar [folhas 114 do PA e 84º-verso dos autos];
14- A declaração apresentada pela C... para efeitos do artigo 57º nº2 alínea a) do CCP estava assinada apenas por um gerente;
15- Procedendo o relatório final do júri em conformidade, por deliberação de 29.03.2010 o Conselho Directivo da ARSC, IP, adjudicou a empreitada à C....
Estes, e só estes, os factos provados.
De Direito
I. Cumpre apreciar as questões suscitadas pela recorrente, o que deverá ser efectuado dentro das balizas estabelecidas, para o efeito, pela lei processual aplicável - ver artigos 660º nº2, 664º, 684º nº3 e nº4, e 685º-A nº1, todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 140º do CPTA, e ainda artigo 149º do CPTA, a propósito do qual são tidas em conta as considerações interpretativas tecidas por Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 10ª edição, páginas 447 e seguintes, e Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição revista, página 850 e 851, nota 1.
II. A autora desta acção urgente, pediu ao TAF de Coimbra que anulasse o relatório preliminar e actos subsequentes do concurso em apreço, devendo aquele relatório ser repetido, e bem assim o relatório final, de forma a excluir dos mesmos a candidata C....
Para o efeito, imputou às peças integrantes da proposta desta candidata uma série de insuficiências e irregularidades [desfasamento entre o plano de trabalhos e o plano de obras; falta de descriminação do plano de mão-de-obra por número de homens/dia de cada profissão; falta de discriminação de equipamentos por trabalho; falta de discriminação dos preços por mão-de-obra e material; falta de menção dos períodos de suspensão da obra, no plano de trabalhos], bem como violação dos artigos 57º nº1 alínea a) e nº4 e 146º nº2 alínea d) do CCP [Código dos Contratos Públicos aprovado pelo DL 18/2008 de 29.01], e ainda falta da devida fundamentação dos relatórios do júri.
O TAF de Coimbra julgou parcialmente procedente a acção, isto é, julgou inimpugnável o relatório preliminar [cuja anulação e repetição era pedida], julgou procedente a falta de fundamentação apontada ao relatório final [artigos 124º CPA e 148º CCP], por via desta procedência julgou prejudicado o conhecimento das irregularidades apontadas às peças integrantes da proposta apresentada pela candidata C... com excepção de uma, que julgou procedente: a violação dos artigos 57º nº1 alínea a) e nº4 e 146º nº2 alínea d) do CCP.
Nesta base, o TAF de Coimbra decidiu anular o relatório final do júri, e condenar a ARSC a repetir o procedimento de concurso a partir desse relatório final, contemplando no mesmo, para efeitos do artigo 148º nº1 do CCP, a exclusão da proposta da C... por falta de declaração de aceitação do caderno de encargos assinada por dois gerentes, nos termos dos artigos 57º nº1 alínea a) e nº4, 146º nº2 alínea d) do CCP, seguindo-se os demais termos do artigo 148º nº2 e nº4 do CCP até final.
A C..., contra-interessada na acção, e a quem tinha sido adjudicado o concurso público, enquanto recorrente vem imputar erro de julgamento à sentença no tocante à procedência da violação dos artigos 57º nº1 alínea a) e nº4, e 146º nº2 alínea d) do CCP.
Temos, pois, que não é atribuída qualquer nulidade à sentença recorrida, nem posta em causa a fidelidade ou suficiência da matéria de facto nela dada como provada. Tão pouco a recorrente reage contra a procedência do vício de falta da devida fundamentação, ou contra a falta de conhecimento das insuficiências e irregularidades apontadas às peças integradoras da proposta da candidata C..., por ter ficado prejudicado.
O objecto deste recurso reduz-se, portanto, ao conhecimento do indicado erro de julgamento de direito.
III. A concorrente C..., em ordem a cumprir o que é preceituado no artigo 57º nº1 alínea a) do CCP, juntou «Declaração de Aceitação do Caderno de Encargos» na qual R..., na qualidade de representante legal da sociedade C... Ldª, tendo tomado inteiro e perfeito conhecimento do caderno de encargos relativo à execução do contrato a celebrar na sequência do procedimento de «Empreitada de Execução das Novas Instalações da ARS Centro - 2ª Fase», declara, sob compromisso de honra, que a sua representada se obriga a executar o referido contrato em conformidade com o conteúdo do mencionado caderno de encargos, relativamente ao qual declara aceitar, sem reservas, todas as suas cláusulas. E assina. [pontos 13 e 14 do provado e folhas 82 e 83 dos autos].
Nessa altura, a respectiva sociedade era integrada por 2 sócios, R... e G..., que exerciam a respectiva gerência, e a sociedade obrigava-se perante terceiros pela assinatura conjunta dos dois gerentes [ver ponto 13 do provado e folha 84-verso dos autos].
O artigo 57º nº1 alínea a) do CCP diz que a proposta é constituída pelos seguintes documentos: a) Declaração do concorrente de aceitação do conteúdo do caderno de encargos, elaborada em conformidade com o modelo constante do anexo I ao presente código, do qual faz parte integrante [...], e o nº4 do mesmo artigo diz que essa declaração de aceitação deve ser assinada pelo concorrente ou por representante que tenha poderes para o obrigar, sendo que, aquando do relatório preliminar o júri deve propor, fundamentadamente, a exclusão das propostas que, além do mais, não cumpram o disposto no número 4 daquele artigo 57º [artigo 146º nº2 alínea d) CCP], e, depois da audiência prévia [artigo 147º CCP], o júri elabora relatório final fundamentado, no qual pondera as observações dos concorrentes efectuadas ao abrigo do direito de audiência prévia, mantendo ou modificando o teor e as conclusões do relatório preliminar, podendo ainda propor a exclusão de qualquer proposta se verificar, nesta fase, a ocorrência de qualquer dos motivos previstos no nº2 do artigo 146º [artigo 148º nº1 do CCP].
No caso, apesar da dita «Declaração de Aceitação do Caderno de Encargos» se apresentar assinada apenas por um dos sócios da C..., o júri do concurso nada disse a tal respeito, quer no relatório preliminar quer no relatório final. Tão pouco a ora recorrente suscitou essa questão antes de intentar esta acção urgente. Tudo se passou, nesse aspecto, como se a «Declaração de Aceitação do Caderno de Encargos» apresentada pela C... não tivesse qualquer problema. E isto, até ser proposta a presente acção.
Todavia, dando razão a essa causa de pedir da autora da acção, o TAF de Coimbra, numa altura em que a adjudicação estava feita à C... e o contrato de empreitada já com ela celebrado [esse contrato de empreitada foi celebrado entre a ARSC e a C... precisamente no mesmo dia em que deu entrada em tribunal a presente acção urgente: 05.05.2010 - ver folha 1 dos autos e folha 1 do PA a eles anexo)], entendeu ter havido violação irremediável dos artigos 57º nº1 a) e nº4, e 146º nº2 d) do CCP, e, com essa base, condenou a ARSC a excluir do concurso a proposta da C....
Cremos, porém, que tudo ponderado, o fez sem razão válida.
Há que constatar, em primeiro lugar, que a declaração de aceitação que é exigida pelo artigo 57º nº1 alínea a) do CCP foi apresentada pela ora recorrente e tida como regular pelo respectivo júri do concurso, que não advertiu nem foi advertido para a necessidade da assinatura dos dois gerentes da C....
Essa irregularidade, pois é disso mesmo que se trata, se tivesse sido oportunamente detectada pelo júri do concurso, ao qual incumbe conduzir todo o procedimento para a formação do contrato, cremos que seria susceptível de gerar um pedido de esclarecimento à concorrente sobre a necessidade ou não da intervenção dos dois gerentes para a obrigar perante terceiros [72º CCP]. Nada obstaria, em nosso entender, que face à constatação, ou à dúvida, sobre a necessidade da assinatura dos dois gerentes da sociedade, o júri, aquando do relatório preliminar ou até do relatório final, tivesse pedido esclarecimento à concorrente, ou até a convidasse a juntar declaração assinada pelos dois gerentes sob pena de ver excluída a proposta [ver, conjugadamente, os artigos 67º nº1, 70º, 72º, 146º e 148º do CCP e 56º do CPA. Sobre o tema pode consultar-se, com proveito, Rodrigo Esteves de Oliveira, Os Princípios Gerais da Contratação Pública, in Estudos da Contratação Pública - I, Coimbra Editora, 2008, páginas 51 a 113; AC TCAN de 14.06.07, Rº1657/05.1BEPRT; AC TCAN de 08.09.2010, Rº80/10.0BEAVR, e AC TCAN de 15.10.2010, Rº1328/10.7BEPRT].
Efectivamente, e sem prejuízo do regime rigoroso do artigo 72º do CCP, certo é que neste caso, o convite ao esclarecimento ou à dita correcção da proposta não é susceptível de provocar qualquer lesão nos interesses e valores em jogo.
Tratar-se-ia, apenas, de uma correcção realizada para sanação de uma irregularidade de representação da sociedade, feita de forma objectiva e transparente, sem quebra das exigências do princípio da concorrência, e sem interferência ou substituição de quaisquer juízos ou opções de mérito por parte do júri do concurso.
Assim, cremos que tal pedido de esclarecimento, ou convite à correcção, se impunha ao próprio júri, ao abrigo do princípio geral do inquisitório [artigo 56º CPA], como condutor do respectivo procedimento, e porque o artigo 72º do CCP, devidamente interpretado, e apesar do seu rigor, não o impede atentos os contornos do caso concreto. Até porque, concluir pela exclusão da proposta da C... nestas circunstâncias nos parece manifestamente desproporcional [artigos 266º nº3 da CRP e 5º nº2 do CPA].
Mas actualmente a necessidade desse esclarecimento, ou dessa correcção, parece-nos que está já ultrapassada, devido à celebração do contrato de empreitada entre a ARSC e a C... [ver a folha 1 do PA anexo aos autos].
Constata-se, na verdade, que no dia 05.05.2010, entre a ARSC e a C..., esta última representada pelos sócios gerentes R... e G..., foi outorgado contrato de empreitada de «Execução das Novas Instalações da ARSC, IP - 2ª fase» em cuja cláusula segunda nº1 se diz que os direitos e obrigações das partes são regulados pelo disposto neste contrato, no caderno de encargos, e nos demais elementos patentes ao procedimento, e pela proposta da segunda outorgante, os quais fazem parte integrante do presente contrato. Em tudo o omisso é aplicável o disposto no Código dos Contratos Públicos e legislação complementar.
Resulta, pois, que a sociedade C... se encontra agora validamente comprometida com o caderno de encargos, enquanto parte no contrato de empreitada que celebrou, surgindo como acto espúrio e perfeitamente inútil militar pela correcção de uma irregularidade que, fruto das circunstâncias, se encontra ultrapassada. Decorre dos termos da cláusula segunda do contrato, assim, a sanação da irregularidade que detectamos a nível da declaração de aceitação do caderno de encargos para efeitos do artigo 57º nº1 alínea a) e nº4 do CCP.
Deve, portanto, ser dado provimento ao recurso jurisdicional, e ser revogada a sentença recorrida na parte nele impugnada.
IV. Nas suas contra-alegações, a candidata J..., autora da acção, vem pedir a alteração do efeito suspensivo atribuído ao recurso pelo TAF de Coimbra, para o efeito meramente devolutivo [ao abrigo do artigo 143º nº3 CPTA], vem defender a inadmissibilidade do documento junto às alegações de recurso [folha 162 dos autos], e vem imputar litigância de má-fé à recorrente, pedindo a sua condenação em multa e indemnização.
Logo que recebido o recurso jurisdicional neste Tribunal Central, foi cumprido o contraditório relativamente a essas três questões.
De seguida, suscitou-se a oportunidade processual de proferir o respectivo acórdão, o que estamos a fazer.
Deste modo, uma vez que a alteração do efeito do recurso visava a produção de efeitos da sentença recorrida entre a sua prolação e a prolação deste acórdão, resulta totalmente prejudicado esse desiderato, motivo pelo qual, sendo acto inútil, nos dispensamos de abordar essa questão [artigo 137º do CPC ex vi 1º CPTA].
Por sua vez, com o documento junto aos autos aquando das suas alegações de recurso, pretendia a sociedade recorrente comprovar que R... possuía poderes bastantes para assinar em plataformas electrónicas de contratação, e que a junção do mesmo seria permitida por se ter tornado necessária em virtude do julgamento da 1ª instância [artigo 693º-B do CPC ex vi 140º do CPTA].
Ora, em primeiro lugar, e como resulta dos pontos II e III deste aresto, o referido documento não se mostrou necessário para resolver a questão que se colocava no recurso jurisdicional, e isso porque não tinha a ver com o conteúdo do julgamento de facto e de direito realizado pela 1ª instância. De facto, a questão situava-se, por inteiro, no âmbito das assinaturas necessárias na declaração de aceitação do caderno de encargos, onde constava, apenas, a assinatura de um dos dois sócios gerentes, nada tendo a ver para o caso os poderes atribuídas a R... para assinar em plataformas electrónicas de contratação.
Temos, assim, que para além de não se ter mostrado necessário a este tribunal, para decidir o recurso, consultar o documento que foi apresentado, também o mesmo não poderia ter sido admitido nos autos, por não caber na hipótese legal do artigo 693º-B do CPC [ex vi artigo 140º do CPTA].
Finalmente, entende a J... que a C... deduz no presente recurso uma oposição cuja falta de fundamento não ignora, altera a verdade dos factos e faz dos meios processuais um uso que é manifestamente reprovável, com o fim de conseguir objectivo ilegal e de protelar o trânsito em julgado da decisão de 1ª instância. Por via disso imputa-lhe litigância de má-fé.
A propósito da má-fé, ALBERTO DOS REIS costumava caracterizar as lides, relativamente à conduta dos respectivos litigantes, como lides cautelosas, lides simplesmente imprudentes, lides temerárias e lides dolosas [Código de Processo Civil Anotado, volume II, páginas 254 e seguintes].
Apenas estas últimas parecem caber no conceito de litigância de má-fé, embora a atitude dolosa [dolo directo, necessário, ou eventual] deva ser estendida até ao ponto de abranger a negligência grave, que convive paredes-meias, como é sabido, com o dolo eventual.
Vem sendo este, também, o entendimento do STA, para quem a condenação por litigância de má fé pressupõe a existência de dolo, não bastando uma lide ousada ou uma conduta meramente culposa, sendo que tal conduta é sancionada apenas naqueles casos em que as partes [tendo agido com dolo ou negligência grosseira] tenham incorrido nalguma das interacções tipificadas nas alíneas do artigo 456º do CPC [ver, neste sentido, AC STA de 18.10.00, Rº46.505, AC STA de 26.09.2002, Rº0987/02. Ver, ainda, quanto ao STJ, AC de 11.04.2000, Rº212/00, AC de 20.03.2001, Rº01A3692, e AC de 02.06.2003, Rº04S004].
Assim, perante uma situação pouco definida, entre lide dolosa ou temerária, em virtude dos elementos para o efeito disponíveis serem pouco elucidativos, a condenação por litigância de má-fé não deverá ser decretada. É que o manifesto gravame jurídico-social que se lhe associa impõe que não haja dúvidas ao qualificar-se a conduta da parte como dolosa ou gravemente negligente.
No presente caso, os factos falam por si mesmos, uma vez que o recurso interposto pela C... merece o provimento deste tribunal superior. Dificilmente se poderá configurar, pois, a conduta da recorrente como dolosa ou grosseiramente negligente, de modo a justificar a procedência da imputação de má-fé que lhe faz a recorrida.
Deverão assim improceder, pelas razões expostas, as questões suscitadas nas contra-alegações da J....
DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal Central em conceder provimento ao recurso, e, em conformidade, revogar a sentença recorrida na parte em que foi posta em causa.
Custas pela recorrida que contra-alegou [J...] - artigos 446º, 447º, 447º-C e 447º-D, todos do CPC, 189º do CPTA, 1º, 2º, 3º nº1, 6º nº2, 7º nº2, 12º nº1 alínea b) e nº2, 13º nº1, e 29º nº2, todos do RCP, bem como Tabela I-B a ele Anexa.
D.N.
Porto, 22.10.2010
Ass. José Augusto Araújo Veloso
Ass. Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro
Ass. Ana Paula Soares Leite Martins Portela