Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 9 de Novembro de 2010 (proc. 851/10)

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Sumário:

Saber se a legislação nacional proíbe a participação separada, num mesmo procedimento de formação de contrato público, de sociedades entre as quais exista uma relação de domínio ou de influencia importante ou cujo capital seja integralmente detido por uma terceira e, caso se concluir por essa proibição, se semelhante interpretação do direito interno se conforma com o direito comunitário, é questão nova, que apresenta dificuldades, em matéria de aplicação reiterada pelas entidades adjudicantes, pelo que assume relevância social fundamental e a admissão do recurso de revista excepcional também se justifica na perspectiva da determinabilidade, segurança e uniformidade na aplicação do direito, em suma, para uma melhor aplicação do direito.

 

Texto Integral:

Formação de Apreciação Preliminar
Acordam em conferência na Secção do Contencioso Administrativo do STA:


I - Relatório:
A...,
intentou no TAF de Sintra contra
INSTITUTO DE EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL, I.P. (IEFP) e
B...,
C...,
D...,
E...,
F...
na qualidade de contra-interessados,
Acção de contencioso pré-contratual relativamente ao concurso n.º 20092100050, para o serviço de refeições e de bar do Centro de Formação Profissional do Porto, em que pediu:
a condenação do Réu a abster-se de excluir a proposta da A. apresentada no mencionado concurso;
a condenação do Réu a abster-se de adjudicar à B... o fornecimento objecto do mesmo concurso;
na eventualidade de estes actos terem sido praticados, a anulação do acto de exclusão da proposta, assim como a anulação do acto de adjudicação à B...;
a condenação do Réu a admitir a proposta da A ao concurso, a proceder à avaliação da mesma de acordo com o critério de adjudicação definido no artigo 6º do Programa de Concurso e, a ordená-la em 1º lugar, adjudicar-lhe a prestação do serviço.
Por sentença de 30/04/2010, o TAF julgou a acção procedente e, em consequência, condenou o Réu a abster-se de excluir a proposta da A. do concurso, assim como a abster-se de adjudicar o serviço à B..., condenando-o ainda a proceder à avaliação da proposta apresentada pela A. de acordo com o critério de adjudicação definido no artigo 6º do programa de Concurso, ordenando-a em 1º lugar e adjudicando a prestação do serviço à A.
Inconformado, o INSTITUTO DE EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL, I.P. interpôs recurso jurisdicional junto do TCA-Sul que, por Acórdão de 31/08/2010, concedeu provimento ao recurso, revogou a sentença recorrida e manteve o acto de exclusão da A... e da F... do procedimento concursal em virtude de serem ambas detida a 100% pela sociedade G....
É deste Acórdão que a A... interpõe recurso nos termos do artigo 150º do CPTA, para ver apreciada a seguinte questão (cfr. pág. 2 do articulado de recurso):
"(...) saber se sendo duas ou mais sociedades detidas a 100% por uma terceira sociedade, tal facto, por si só, as impede de concorrerem ao mesmo procedimento concursal, apresentando cada uma a sua proposta"
Alega ser necessária a admissão da revista de forma a permitir ao STA pronunciar-se sobre esta questão, que é nova no contencioso administrativo e se reveste de relevância fundamental, quer do ponto de vista jurídico, quer do ponto de vista social, pois o interesse da intervenção orientadora do STA ultrapassa os limites do presente caso, tanto mais que além das decisões opostas das instancias nestes autos, existem Acórdãos contraditórios dos TCA, o que reforça a utilidade da admissão deste recurso excepcional.
O IEFP apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela manutenção do Acórdão recorrido.


II - Apreciação:
1. O recurso de revista de decisões proferidas pelos TCA em segunda instância, terceira apreciação jurisdicional de uma causa administrativa é, em geral, rejeitado pela lei de processo (CPTA), embora seja permitido, a título excepcional, que o STA admita esta terceira apreciação da causa num recurso relativo a matéria de direito, exclusivamente naqueles casos em que estejam reunidos certos pressupostos que a lei (art.º 150.º n.º 1 do CPTA) aponta como índices de que a causa tem uma relevância superior ao comum. Tais pressupostos respeitam à natureza das questões sobre as quais versa o litígio, que devem atingir um grau de importância fundamental, de uma perspectiva jurídica ou social, ou mostrar-se claramente necessária a intervenção do STA para uma melhor aplicação do direito.
Assim, é mantido e aprofundado o princípio da apreciação jurisdicional das causas administrativas, como regra, apenas em duas instâncias. Na consecução deste objectivo concorrem com o disposto no art.º 150.º do CPTA, a previsão de revista "per saltum" do artigo 151.º, e a transformação do recurso para uniformização de jurisprudência num recurso do tipo acção revisiva, a ser interposto após o trânsito em julgado da decisão recorrida.
Na concretização dos conceitos relativamente indeterminados que a lei estabelece como orientação para a filtragem dos recursos de revista a admitir excepcionalmente, o STA tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental exigida pelo artigo 150º n.º 1 do CPTA se verifica, designadamente, quando a questão a apreciar seja de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de enquadramento normativo especialmente complexo, de ser necessário compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis, bem como casos em que a questão se reveste de novidade, e relativamente à qual não tenha havido oportunidade de o STA se pronunciar.
Sobre a apreciação da relevância social fundamental, o STA tem entendido que este requisito se verifica, designadamente, nas situações em que esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão no tecido social, ou expansão do interesse orientador da intervenção do Supremo relativamente a futuros casos análogos ou do mesmo tipo, mas em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio.
A admissão de revista para melhor aplicação do direito terá lugar, designadamente quando, em face das características do caso concreto, ele revele seguramente a possibilidade de ser visto como um tipo, contendo uma questão bem caracterizada, passível de se repetir em casos futuros, e cuja decisão nas instâncias suscita fundadas dúvidas, nomeadamente por se verificar divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, gerando incerteza e instabilidade na resolução dos litígios fazendo antever como objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema, ou seja, tendo como finalidade conseguir o bom funcionamento do contencioso administrativo.


2. No caso dos autos, a Recorrente imputa ao Acórdão do TCA erro na aplicação do direito, resultante da errada interpretação do disposto nos artigos 70º n.º 1 alínea g) e 146º n.º 2 alínea i), ambos do Código dos Contratos Públicos (CCP), por ter entendido que o mero facto de a A... e a F...serem detidas a 100% pela sociedade G..., consubstanciava violação do Princípio da Concorrência, sendo fundamento para a exclusão das duas propostas.
A Recorrente suscita ainda como questão prejudicial a colocar ao TJUE, determinar se a interpretação conferida pelo TCA aos Artigos 70º n.º 1 alínea g) e 146º n.º 2, alínea i), do CCP é contrária ao direito comunitário, e menciona que a propósito desta questão o TJCE se pronunciou no sentido de que as legislações nacionais não podem consagrar proibições absolutas de participação simultânea em procedimentos concursais de empresas entre as quais exista uma relação de domínio ou que estejam associadas entre si, sob pena de se violar o direito comunitário (Acórdão Assitur, Processo C - 538/07, de 19 de Maio de 2009).
Resulta do autos que as instâncias decidiram em sentidos diferentes e conforme indica a Recorrente, existem Acórdãos do TCA que sustentam entendimento diverso do que aqui foi preconizado pelo Acórdão recorrido (Acórdão do TCA-Sul de 31/10/2010; Acórdão TCA-Sul de 25/03/2010, proferido no processo 05806/09; Acórdão do TCA-Sul de 29/01/2009, proferido no processo 04105/08, Acórdão TCA- Sul de 14/09/2010, proferido no processo 06482/10).
Por outro lado, o TJC no Ac. de 19 de Maio de 2009, P. C-538/07, em processo prejudicial apresentado no âmbito de um litígio entre Assitur Srl e a Camera di Commercio, Industria, Artigianato e Agricultura di Milano, decidiu pela incompatibilidade com o art.º 29.º, 1.º §, da Directiva 92/50/CEE do Conselho, de 18.06.1992, da legislação nacional que proíbe a participação separada, num mesmo procedimento de formação de contrato público, de sociedades entre as quais exista uma relação de domínio ou de influencia importante.
E, no Ac. de 16.12.2008, P. C-213/07, o TJC também considerou que se opõe ao direito comunitário a norma nacional que institui uma presunção inilidível de incompatibilidade entre a qualidade de proprietário, sócio, accionista importante ou quadro dirigente de uma empresa que exerce uma actividade no sector dos meios de comunicação social e a de proprietário, sócio, accionista importante ou quadro dirigente de uma empresa à qual o Estado ou outra pessoa colectiva do sector público em sentido lato atribuam a execução de empreitadas de obras, de fornecimentos ou de serviços.
É este o contexto em que se move o litígio, à luz do qual devem ser apreciados os pressupostos de admissibilidade do presente recurso excepcional, conforme exigido pelo n.º 1 do artigo 150º do CPTA.
A questão de saber se envolve ofensa dos princípios da concorrência esta relação especial entre as concorrentes que consiste em o capital de ambas ser detido na totalidade por uma outra empresa, ainda que diferente da analisada no caso Assitur, em que a terceira empresa era detentora do capital de uma concorrente e também inteiramente participada por outra concorrente (Poste) à adjudicação do serviço de correio a adjudicar, acaba por corresponder ao mesmo tipo relações entre empresas que está na base das preocupações quanto ao pleno funcionamento da concorrência.
Porém, uma questão idêntica não foi colocada ao STA, pelo que também não teve oportunidade de se pronunciar sobre os artigos 70º n.º 1 alínea g) e 146º n.º 2, alínea i), do CCP, ou outras normas do Código que configurem o quadro legal para a resolução desta questão jurídica, dada a proximidade da entrada em vigor do CCP.
Apesar disso as instancias estão a braços com diversos processos sobre o assunto, como demonstram os elementos juntos aos autos pela recorrente, sendo que as decisões nem sempre se orientam no mesmo sentido, como sucedeu nestes autos entre a 1.ª instancia e o TCA.
Há assim uma questão de direito nova, num quadro jurídico que apresenta complexidade superior ao comum, desde logo pela necessidade de harmonizar com o direito comunitário a interpretação das normas nacionais, e em matéria que pode considerar-se de elevada relevância social dada a aplicação sucessiva e frequente a todos os níveis da Administração, aliás, alargado a entidades adjudicantes não integradas na Administração.
A intervenção do STA neste contexto pode ter um papel orientador se chegar a tempo de contribuir para a decisão de processos pendentes no sistema de administração da justiça e assim propiciar a uniformidade de orientação, pelo que a admissão do recurso também é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.


III - Decisão
Em conformidade com o exposto acordam, nos termos dos n.ºs 1 e 5 do art.º 150.º do CPTA em admitir o recurso.
Sem custas nesta fase.
Lisboa, 9 de Novembro de 2010. - Rosendo Dias José (relator) - Maria Angelina Domingues - Alberto Augusto Oliveira.