Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 9 de Junho de 2011 (proc. 291/11)

Imprimir

Sumário:

Saber se o TCA em apelação, sustentando-se no nº 2 do artº. 95º do CPTA, e usando para tanto elementos não alegados especificamente - embora constantes de documentos juntos aos autos, como um dispositivo do Programa do Concurso relativo à formação de um contrato (que revelaria ilegalidade por desrespeito da norma do artº. 139º nº 4 do CCP) -, pode decidir vício não alegado e anular o procedimentos concursal, revela que se lançou mão do regime jurídico do contrato, sem efectuar propriamente um aditamento de matéria de facto. E, por outro lado, a interpretação da regra de conhecimento oficioso, por si, não apresenta dificuldade acima do comum; a matéria não atinge o grau de importância jurídica ou social fundamental e no caso não se revela necessário conhecer da revista a fim de o STA exercer a sua função de regulador do sistema.

 

Texto Integral:

Formação de Apreciação Preliminar
Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do STA:


I - Relatório:
O Consórcio formado pelas empresas A... Lda., e B..., Lda., instaurou no TAF de Leiria a presente acção de contencioso pré-contratual contra
MUNICÍPIO DE LEIRIA, e
C..., Lda., na qualidade de contra-interessada,
em que pede a anulação da deliberação da Câmara Municipal de Leiria de 26/05/2009 que adjudicou a empreitada de construção de um bloco de aulas para a Escola do 1º ciclo EB 2, 3 ..., em Pousos, concurso aberto por Aviso publicado no DR, II série, n.º 22, de 2/02/2009. Pede também a condenação do R. a excluir do procedimento concursal a proposta da contra-interessada, a substituir a deliberação impugnada por outra que classifique o consórcio do A. em 1º lugar, lhe adjudique o contrato e com ele o celebre, abstendo-se de o fazer com a C....
Atribui à deliberação impugnada violação do disposto no ponto 8.1.3 do programa do procedimento e do anúncio, conjugada com a violação do artigo 132º do Código dos Contratos Públicos e artigos 124º e 125º do CPA, bem como ofensa dos princípios da imparcialidade, livre concorrência e isenção.
Por sentença 20/04/2010 o TAF de Leiria julgou a acção procedente a anulou a deliberação de adjudicação.
Inconformado o R. Município apelou para o TCA que, por Acórdão de 19/01/2011, anulou o programa do procedimento concursal.
É deste Acórdão que o MUNICÍPIO DE LEIRIA pede, nos termos do artigo 150º do CPTA, a admissão de recurso de revista. Alega, em síntese, que o Acórdão do TCA incorre em nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 668º n.º 1 alínea d) do CPC, e contraria o disposto no artigo 95º n.º 2 do CPTA, sustentando que o Tribunal estava impedido de identificar a existência de causas de invalidade reveladas pelos factos considerados provados, enquanto no caso o TCA aditou o facto do ponto 19 do Programa do Concurso e nele baseou a sua decisão de anular o procedimento.
O Consórcio recorrido apresentou contra-alegações nas quais pugna pela inadmissibilidade da revista, por não se verificarem os pressupostos legais e, quanto ao mais, pela manutenção do decidido.
Nos termos do n.º 5 do artigo 150º do CPTA passamos à verificação dos pressupostos legais de que depende a admissão da revista excepcional.


II - Apreciação. Os pressupostos de admissão do recurso de revista.
1. O recurso de revista de Acórdãos do TCa proferidos em 2.ª instancia tem carácter excepcional, no sentido de reservado para as situações em que estejam em causa questões jurídicas ou sociais tão relevantes que atinjam o grau «fundamental», ou ainda quando a intervenção do STA seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Tendo em vista concretizar estes conceitos abertos esboçados pela previsão legal, esta formação tem considerado que a relevância jurídica fundamental existe quando a questão a apreciar é especialmente complexa, seja em razão de inovações no quadro legal, do uso de conceitos indeterminados, de remissões condicionadas à adaptabilidade a outra matéria das soluções da norma que funciona como supletiva e, em geral, quando o quadro legal suscite dúvidas na doutrina e na jurisprudência.
No que concerne à relevância social fundamental de determinada questão, este pressuposto tem vindo a dar-se por verificado, designadamente nos casos em que a pretensão incide sobre um importante direito difuso, ou apesar de não ter essa natureza, as circunstancias são de molde a fazer prever que vai surgir no contencioso, de forma idêntica, em relação a um vasto número de interessados actual ou potencial, isto é, a questão apresenta capacidade de se expandir com reflexos num assinalável número de casos futuros.
A intervenção do STA tem sido entendida como claramente necessária quando esteja em causa questão que suscite incerteza ou dúvida por se detectarem correntes diferentes quanto à respectiva solução, ou o assunto seja novo, sem que sobre ele se tenha pronunciado o STA e, nas circunstancias da causa e da pertinência com que nela são colocados os problemas jurídicos, é de prever, razoavelmente, que a intervenção e pronúncia do órgão de cúpula do sistema de justiça administrativa pode contribuir para a estabilidade, segurança, previsibilidade e eficácia na aplicação do direito.
2. Na apreciação da causa o TCA procedeu ao alargamento da matéria de facto ao abrigo do artigo 712º n.º 1 alínea a) do CPC (cfr. págs. 7 e 8 do Acórdão a fls 470 e 471 dos autos) e concentrou a sua análise sobre o cumprimento do disposto no artigo 139º n.º 4 do CCP, isto é, em saber se foi observada a proibição de utilizar um modelo em que a avaliação de uma proposta dependa das características de outras propostas.
E constatou que o modelo de avaliação do factor preço fazia depender a valorização das propostas daquela que apresentava o preço mais baixo e que foi tomada como padrão na fórmula utuilizada: N=Vp/VpX12, em que Vp é o preço da proposta mais baixa.
Portanto, analisou o caso em face do facto que da alínea P) da matéria de facto aditada pelo Acórdão do TCA e prosseguiu:
"Temos de concluir que o preço de uma das propostas (a mais baixa) influenciava a cotação das demais, o que é proibido pelo novo CCP.
Assim sendo, tem de ser anulado o presente programa do concurso."
O Recorrente discorda pelas seguintes razões:
- A questão tratada pelo TCA resultou do alargamento da matéria de facto ao ponto 19 do programa de procedimento, o qual não constava da factualidade dada como provada pela sentença;
- "O poder do juiz de identificar vícios não alegados só pode ser exercido depois de terminada a fase de alegações do art.º 91.º do CPTA, ou seja a pós o processo estar completo no que respeita aos factos ponderáveis e provados";
- A questão referente ao método de avaliação das propostas segundo o critério do preço não tinha sido suscitada pelas partes e assim, o Acórdão teria incorrido em nulidade por excesso de pronúncia.
Sem o explicitar parece considerar que a questão dos limites do poder identificador de vícios do juiz é questão que preenche os pressupostos de admissão de revista excepcional.
Vejamos:
O Ac. de 19-10-2010, P. 0652/10 deste STA decidiu:
I - O n.º 4 do art. 139.º do Código dos Contratos Públicos proíbe que nos modelos de avaliação das propostas sejam utilizados quaisquer dados que dependam, directamente ou indirectamente, de atributos que não sejam apenas o de cada uma das propostas a avaliar, pretendendo-se obstar a que a avaliação de cada uma das propostas possa ser influenciada pelo conteúdo de qualquer outra proposta.
II - Viola o preceituado naquela norma uma regra do programa do concurso, relativa à avaliação do factor preço, nos termos da qual à proposta de preço mais baixo é forçosamente atribuída a pontuação de 30% e se calculam os valores a atribuir às restantes propostas com base numa proporcionalidade inversa.
A solução dada pelo Acórdão recorrido ao litígio dos autos está em conformidade com esta jurisprudência.
Porém, a questão suscitada pela recorrente não é a decidida pelo referido aresto e pelo Acórdão do TCA «sub juditio», mas sim a de saber se o TCA pode alargar a matéria de facto, utilizando para tanto o conteúdo de um documento junto aos autos - que era precisamente o Programa de Concurso - e com base nesse facto e no disposto no n.º 2, 2.ª parte do artigo 95.º do CPTA, se podia identificar uma causa de invalidade diversa das que tinham sido alegadas e com esse fundamento anular o procedimento de formação de um contrato público.
As questões do alargamento da matéria de facto e do conhecimento oficioso do vício procedimental foram decididas em sentido positivo pelo TCA.
Quanto à primeira, o acto tinha sido atacado com fundamento diverso daquele em relação ao qual foi aditado o que o TCA e a ora recorrente consideraram facto novo, que foi considerado instrumental.
Porém, em contencioso pré-contratual, a invocação de uma cláusula do programa do concurso, como aquela que foi aditada à matéria de facto, não é invocação de um puro facto, é preponderantemente matéria de direito, o direito daquele procedimento, já que se trata da regra ou critério de avaliação das propostas, isto é de avaliação dos aspectos - elementos ou características - do contrato sujeitos à concorrência, a que o n.º 2 do art.º 56.º do CCP chama «atributos das propostas».
Não se afigura duvidoso que as regras de avaliação das propostas para efeitos de adjudicação, não são matéria de facto e não podem funcionar como tal para efeitos de identificação oficiosa pelo juiz de vícios não alegados, a que se refere a segunda parte do n.º 2 do art.º 95.º do CPTA.
Por outro lado, o conhecimento "ex officio" de causas de invalidade não alegadas é matéria que não tem suscitado dúvidas interpretativas, face à clareza da norma aludida do n.º 2 do artigo 95.º do CPTA.
Nos termos expostos a questão suscitada pela recorrente apresenta-se de dificuldade comum e sem relevância social superior à média, nem se antevê necessidade especial de intervenção do Supremo na revista para orientar e regular a administração da justiça.


III - Decisão:
Em harmonia com o exposto, não se verificam os pressupostos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, pelo que acordam em não admitir a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 9 de Junho de 2011. - Rosendo Dias José (relator) - José Manuel da Silva Santos Botelho - Luís Pais Borges.