Sumário:
I - A assembleia geral de uma sociedade por quotas, como órgão interno da sociedade, tem competência limitada ao interior da sociedade, não lhe cabendo manifestar para o exterior a vontade da mesma sociedade, vinculando-a perante terceiros.
II - Porém, como órgão superior da sociedade, a assembleia geral pode deliberar sobre todos os assuntos que interessem à sociedade, mesmo de gestão, que normalmente seriam da competência dos gerentes.
III - Assim, a funcionária de uma sociedade por quotas a quem, por deliberação da assembleia geral, foram concedidos plenos poderes para assinar em nome da firma, propostas de empreitadas para concursos, está validamente constituída representante da mesma sociedade, para assinar a declaração de aceitação do caderno de encargos, referida no artigo 57, número 1, alínea a), do Código dos Concursos Públicos.
Texto Integral:
Acordam, na Secção do Contencioso Administrativo, do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A..., com sede na ..., nº ..., ..., em Évora, os demais sinais dos autos, veio interpor recurso per saltum, nos termos do art. 151, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), da sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Beja, em 21.3.10, que julgou improcedente acção administrativa especial, de contencioso pré-contratual, na qual a Autora (A.), a ora recorrente pediu a
- anulação da deliberação da Câmara Municipal de Redondo, de 24.6.09, que no âmbito do procedimento pré-contratual de concurso público para a "Empreitada de Requalificação do Centro Histórico de Redondo - Espaços Exteriores da Zona Envolvente do Castelo 1ª Fase", adjudicou tal empreitada à firma B..., com sede na Av. ..., nº ..., em Évora;
- declaração de invalidade do contrato de empreitada que, na sequência dessa adjudicação, foi celebrado entre o Município de Redondo e a B...;
- condenação do réu (R.) Município de Redondo a proferir decisão de adjudicação da referida empreitada à ora recorrente, nos termos da proposta por esta apresentada e graduada em segundo lugar, no referido concurso público.
Apresentou alegação (fls. 196 a 214, dos autos), com as seguintes conclusões:
a) O presente recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja em 21 de Março de 2010, que julgou improcedentes os pedidos da Autora, aqui Recorrente, por ter entendido que o acto administrativo impugnado não violou o disposto no n.º 4 do artigo 57.º e na alínea e) do nº 2 do artigo 146.º do CCP, que determinam a exclusão de uma proposta constituída por uma declaração de aceitação do conteúdo do caderno de encargos assinada por quem não tenha poderes para vincular o concorrente.
b) Verificam-se os requisitos necessários à admissão do presente recurso, nos termos previstos nos nºs. 1 e 2 do artigo 151.º e do n.º 2 do artigo 150.º do CFI'A.
c) O raciocínio que subjaz à sentença recorrida, embora laconicamente fundamentado, é simplesmente este: a (in)existência de poderes de representação deveria in casu ser apreciada pelo júri do Concurso com base apenas nas disposições de Direito Privado, nomeadamente de Direito Comercial aplicáveis, e, mais ainda, estas teriam sido respeitadas pelo acto administrativo impugnado, pois haviam sido conferidos ao assinante poderes para vincular a Contra-interessada adjudicatária na assinatura de propostas de empreitadas a apresentar em concursos, por meio da deliberação dos sócios de 31 de Março de 2001, regista na Acta n.º 16-A.
d) Tudo se resume, por isso, a saber se a deliberação da Assembleia Geral de uma sociedade por quotas, registada em acta, constitui título válido para designar um procurador com poderes para representar e vincular essa sociedade perante terceiros - decorrendo da resposta a esta questão a solução do litígio que opõe as partes, visto que é este (único) instrumento que sustenta os alegados poderes de representação da assinante da declaração prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 57° do CCP.
e) Ora, a Assembleia Geral é, por natureza, um órgão interno da sociedade por quotas, cujas deliberações não tem eficácia externa, cabendo, em regra, os poderes de representação perante o exterior à gerência, enquanto órgão especificamente criado para esse efeito (cfr. n.º 1 do artigo 260.° e n.º 1 do artigo 253.º a contrario do CSC); sendo, ademais, irrefutável que a prática de actos e a outorga de negócios constitutivos de relações jurídicas - tal como é o caso da assinatura de documentos constitutivos de uma proposta - integra-se na esfera irredutível dos poderes de representação que incumbem à gerência.
f) Ainda que se concebesse que as competências da gerência, maxime a de representação, não são exclusivas, mas antes partilhadas com a Assembleia Geral - como defendeu a Contra-interessada nos autos ora recorridos - as deliberações que, nesse contexto, venham a ser tomadas pela Assembleia Geral traduzem-se, afinal, num mero exercício do poder de tutela, correspondente a limitação dos poderes de representação da gerência nos termos do trecho final do n.º 1 do artigo 261.º do CSC, o qual não prescinde, afinal, de um posterior acto de execução pela gerência, assim se assegurando a veiculação da vontade da sociedade comercial para o exterior pelo órgão para tal competente.
g) Por imperativo lógico, apenas a gerência - e já não a Assembleia Geral - tinha competência para conferir poderes de representação da sociedade por quotas à funcionária C... (cfr. n.º 6 do artigo 252.° do CSC): apenas quem detém os poderes de representação perante terceiros pode, naturalmente, solicitar a colaboração temporária de outrem, "delegando" o exercício desse poder para a prática de um acto ou conjunto de actos.
h) E, por isso, o (único) título válido) e adequado para a atribuição a um terceiro de poderes de representação de uma sociedade por quotas é forçosamente o documento que registe o acto do gerente único ou a deliberação de uma gerência plural - já não uma acta da Assembleia Geral, que tem apenas a virtualidade de registar o acto de um órgão distinto e incompetente para a nomeação de mandatário ou procurador.
i) Dito isto, fácil é compreender o erro em que incorreu a sentença recorrida: ao aplicar as «diversas disposições de direito privado, nomeadamente de direito comercial, invocadas nos presentes autos pelas partes», pressupôs, em errada interpretação do disposto no n.º 1 do artigo 260.º, no n.º 1 do artigo 253.° a contrario e no n.º 6 do artigo 252.° do CSC, que uma acta de Assembleia Geral de uma sociedade por quotas constitui um titulo jurídico válido de atribuição de poderes de representação dessa sociedade a terceiros.
j) E, desse modo, incorreu em violação do nº 4 do artigo 57.º do CCP e da alínea e) do n.º 2 do artigo 146.º do CCP, pois chancelou a validade do acto administrativo impugnado que admitiu e adjudicou uma proposta constituída por um documento assinado por quem, de facto, não tinha poderes para obrigar a Contra-interessada adjudicatária.
k) Por fim, importa salientar que o acto praticado pela funcionária da B..., traduzido na assinatura da declaração de aceitação das cláusulas do caderno de encargos, não é susceptível de ser ratificado, desde logo, porque é à data da apresentação da proposta, e não em qualquer momento posterior, que o cumprimento da formalidade legal imposta pelo n.º 4 do artigo 57.º do CCP deve ser aferido.
l) Aliás, a possibilidade de ratificação do acto praticado pela funcionária da Contra-interessada violaria vários princípios gerais do actual direito administrativo adjudicatório (v.g. princípio da intangibilidade das propostas, da seriedade e firmeza das propostas, ou ainda os princípios da igualdade e da imparcialidade).
m) Não pode, por isso, ser (sequer) equacionada a renovação do acto administrativo impugnado, razão que conduz a uma só conclusão: a reconstituição da situação actual hipotética implica, tal como peticionado pela Recorrente, não apenas a anulação do acto de adjudicação, como igualmente do contrato de empreitada entretanto celebrado e a condenação do Recorrido a adjudicar a proposta apresentada pela A... no âmbito do Concurso e que foi ordenada em segundo lugar na lista de classificação.
Termos em que o presente recurso jurisdicional deve ser admitido por Vossas Excelências e, a final, julgado procedente,
revogando-se a decisão recorrida, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja e, em consequência, determinado o seguinte, ao abrigo do n.º 3 do artigo 729.° do Código do Processo Civil ex vi artigo 140º do CPTA:
a) A anulação da deliberação de adjudicação, de 24 de Junho de 2009, da Câmara Municipal do Redondo,
b) A declaração da invalidade consequente do contrato de empreitada entretanto celebrado; e
c) A condenação do Recorrido adjudicar a proposta apresentada no Concurso pela A..., por ter sido classificada em segundo lugar.
A recorrida particular, contra-interessada B..., apresentou contra-alegação (fls. 238 a 247, dos autos), com as seguintes conclusões:
1. Não assiste qualquer razão à A., A..., ora recorrente.
2. Dispõe o n°. 4 do art. 57° do CCP que a declaração de aceitação do conteúdo do caderno de encargos "deve ser assinada pelo concorrente ou por representante que tenha poderes para o obrigar".
3. Decorre de tal preceito legal que não se exige que se exiba qualquer documento comprovativo dos poderes de representação do concorrente, aquando da subscrição da indicada declaração.
4. Assim sendo, como é, a funcionária da B..., não teria que ser portadora de qualquer documento comprovativo de estar investida de tais poderes de representação.
5. Em suma, como de forma lúcida e pedagógica ditou o Júri do Concurso, nenhuma das normas invocadas pela ora recorrente "impõe que a atribuição de poderes para assinar propostas tenha um especial formalismo"
De todo o modo,
6. A funcionária, C..., estava validamente mandatada pela B..., através da acta da Assembleia Geral de 31 de Marco de 2001.
7. Existe uma total e absoluta coincidência entre os sócios e os gerentes da B..., sociedade comercial, por quotas.
8. A B... poderia sempre mandatar a sua funcionária através de acta de Assembleia Geral, vinculando-se, desta forma.
Mas mesmo que assim não se entendesse, o que só a titulo estritamente académico se concebe
9. Desnecessário se tornava a elaboração de novo documento, assinado exactamente pelos mesmos subscritores, de molde a executar a deliberação da Assembleia Geral, atenta - reitera-se - a total e absoluta coincidência entre os sócios e os gerentes da B....
10. Refira-se que inexistiu qualquer ratificação, na sequência do pedido de esclarecimento do Júri.
11. A B..., limitou-se a exibir a acta da Assembleia Geral, através da qual, mandatou a sua funcionária, na sequência das inusitadas dúvidas formais suscitadas a total despropósito pela A.
Todavia, saliente-se
12. Inexiste qualquer impossibilidade legal de tal ratificação ser levada a cabo, caso esta se verificasse como necessária, atento o prescrito no n°.1 do art. 261° do CSC.
13. E no caso presente, o princípio de aproveitamento do acto administrativo, igualmente imporia tal solução.
14. A contra-interessada, B..., louva-se, com a devida vénia, no teor da douta e bem sustentada decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja.
15. A douta decisão recorrida fez uma correcta interpretação das normas legais, inexistindo qualquer vício de violação de lei e de erro sobre os pressupostos de direito, por violação do nº 4 do art. 57° e da al. e) do nº. 2 do art.146°, ambos do CCP.
Termos em que o recurso jurisdicional apresentado pela A..., deverá ser reputado por totalmente improcedente, confirmando-se a douta decisão recorrida, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja.
Cumpre decidir.
2. A sentença recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:
A) Em 2001-03-31, reuniu a Assembleia Geral da Contra-interessada, tendo como ponto único da ordem de trabalhos, lavrada na Acta n.º 16-A, "... conceder plenos poderes à funcionária D. C..., para assinar, em nome da firma, propostas de empreitadas para concursos...", o que depois de proposto foi aprovado por unanimidade dos seus 3 (três) sócios-gerentes;
B) A Contra-interessada obriga-se mediante a assinatura de dois dos três sócios-gerentes;
C) Em 2009-04-20, por anúncio publicado no Diário da República, II Série, n.º 76, com o n.° 1650/2009, o MUNICÍPIO DO REDONDO publicitou o início do procedimento pré-contratual de concurso público para a EMPREITADA DE REQUALIFICAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE REDONDO, ARRANJOS EXTERIORES DA ZONA ENVOLVENTE DO CASTELO - 1ª FASE;
D) Em 2009-05-19, realizou-se o acto público do CONCURSO, no qual foi apresentada pela A. uma reclamação relativa à admissão da proposta do concorrente CONTRA-INTERESSADA, por considerar que a proposta daquela deveria ser excluída, uma vez que estava assinada por apenas uma pessoa, quando a forma de obrigar a sociedade é através da assinatura de dois sócios-gerentes;
E) O Júri do CONCURSO pediu esclarecimentos de forma a clarificar a reclamação, tendo então tido acesso à Acta n.º 16-A, melhor identificada na alínea A) supra;
F) Em 2009-05-20, no seu Relatório Preliminar de análise de propostas o Júri do CONCURSO, tendo em conta os esclarecimentos prestados pela Contra-interessada, admitiu a proposta daquela, classificou e ordenou as propostas, ficando a Contra-interessada em primeiro lugar e a proposta da A. ordenada em segundo lugar, propondo assim a adjudicação a Contra-interessada;
G) Em 2009-05-21, a A. foi notificada do referido Relatório Preliminar e para, querendo, se pronunciar por escrito, no prazo de 5 dias úteis, sobre o mesmo;
H) O que fez, em 2009-06-01, mantendo a posição de que a proposta da CONTRA-INTERESSADA deveria ter sido excluída;
I) Em 2009-06-05, no Relatório Final de análise das propostas, ponderadas as observações da A. em sede de audiência prévia, o Júri do CONCURSO entendeu que nem o n.º 6 do artigo 252.º do Código das Sociedades Comerciais, nem os artigos 262.° e 1157.°, ambos do Código Civil, invocados pela A..., "impõe[m] que a atribuição de poderes para assinar propostas tenha um especial formalismo, como sucede, por exemplo, em situações expressamente previstas, entre outras no código do Notariado. É, assim de concluir que a deliberação da Assembleia-geral da [Contra-interessada], que confere poderes a C..., cumpre as regras da representação voluntária estabelecida no art. 252° do CC. Mas, mesmo que assim não fosse, sempre poderia a representada rectificar o acto da representante C..., o que manifestamente veio a fazer com a junção da acta de 31.03.2001 e não pondo em causa, nem revogando, os actos praticados por aquela praticados no âmbito da representação. Face ao exposto o Júri delibera, por unanimidade, manter o teor do Relatório Preliminar...", propondo assim a adjudicação da proposta da B...;
J) Em 2009-06-24, a CMR deliberou, por maioria e em minuta, aprovar o Relatório Final referente a empreitada melhor identificada na alínea C) supra;
K) Em 2009-07-06, a Entidade Demandada notificou a A. da decisão de adjudicação da empreitada objecto do CONCURSO a B...;
L) Em 2009-08-07, deu entrada neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja a presente acção.
3. A questão jurídica a decidir consiste, essencialmente, em saber se, através de deliberação, em assembleia-geral, podem os sócios de uma sociedade por quotas constituir, validamente, um terceiro como representante dessa sociedade.
A sentença recorrida respondeu afirmativamente a essa questão, considerando, nesse sentido, não haver na lei nem «nas peças concursais qualquer exigência regulamentar que imponha a junção de instrumentos de mandato ou o reconhecimento das assinaturas dos proponentes, certificando os poderes de representação das empresas que concorrem». Assim, considerou, ainda, que cabia aos júri do concurso decidir, «face à margem de liberdade que as peças processuais lhe deixaram» e ao «estabelecido nas normas regulamentares concretamente estabelecida nas peças processuais em apreço e, bem assim nas diversas disposições de direito privado, nomeadamente de direito comercial, invocadas nos presentes autos pelas partes», se a proposta da sociedade ora recorrida, beneficiária da adjudicação, estava assinada por representante com poderes para o efeito. E concluiu que estava nessa situação a funcionária dessa mesma sociedade, que assinou tal proposta, a quem a assembleia-geral, em reunião para o efeito realizada, havia concedido plenos poderes «para assinar, em nome da firma, propostas de empreitadas para concursos».
A recorrente impugna este entendimento da sentença, alegando, em síntese, que a assembleia geral é um órgão interno da sociedade por quotas, sem poder para manifestar a respectiva vontade para o exterior, e que são os actos dos gerentes que vinculam a sociedade perante terceiros. Pelo que, sendo também a nomeação de mandatários ou procuradores da sociedade da competência da respectiva gerência, e não da assembleia geral de sócios, a indicada funcionária da recorrida não estava mandatada, validamente, para a representar, na assinatura da proposta em causa. E, assim, concluiu a recorrente que a sentença fez errada interpretação dos arts 260/1, 252/6 e 253/1, do Código das Sociedades Comerciais violando, em consequência, o disposto nos arts 57/4 e 146/2/e), do Código dos Contratos Públicos (CCP).
Vejamos, pois.
O Código das Sociedades Comerciais (CSC), aprovado pelo DL 262/86, de 2.9, no Capítulo VI do respectivo Título III (Sociedades por quotas»), estabelece, no art. 252 (Artigo 252º (Composição da gerência):
1. A sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes, que podem ser escolhidos de entre estranhos à sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena.
2. Os gerentes são designados no contrato de sociedade ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios, se não estiver prevista no contrato outra forma de designação.
3. A gerência atribuída no contrato a todos os sócios não se entende conferida aos que só posteriormente adquiram esta qualidade.
4. A gerência não é transmissível por acto entre vivos ou por morte, nem isolada, nem juntamente com a quota.
5. Os gerentes não podem fazer-se representar no exercício do seu cargo, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 261º.
6. O disposto nos números anteriores não exclui a faculdade de a gerência nomear mandatários ou procuradores da sociedade para a prática de determinados actos ou categorias de actos, sem necessidade de cláusula contratual expressa.), que «1. A sociedade é administrada por um ou mais gerentes», dispondo, ainda, que estes «devem praticar os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios» (art. 259) e que «os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na perante terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes das deliberações dos sócios» (art. 260/1).
Assim, e no dizer de Raul Ventura, «a gerência é, por lei e salvo casos excepcionais, o órgão da sociedade criado para lhe permitir actuar no comércio jurídico, criando, modificando, extinguindo, relações jurídicas com outros sujeitos de direito» (Vd. Raul Ventura, in Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Sociedades por Quotas, vol. III, 3ª reimp., Liv. Almedina, 131/132.). É, pois, um órgão externo e representativo, cabendo-lhe exteriorizar perante terceiros a vontade da sociedade, com a faculdade de «nomear mandatários ou procuradores da sociedade para a prática de determinados actos ou categoria de actos», nos termos do nº 1 do citado art. 252, do CSC.
Ora, a questão que agora nos ocupa é, justamente, a de saber se esta é uma faculdade exclusiva da gerência ou, pelo contrário, deve ser também reconhecida aos próprios sócios, reunidos em assembleia geral (Artigo 246 (Competência dos sócios):
1. Dependem de deliberação dos sócios os seguintes actos, além de outros que a lei ou o contrato indicarem:
a) A chamada e a restituição de prestações suplementares;
b) A amortização de quotas, a aquisição, a alienação e a oneração de quotas próprias e o consentimento para a divisão ou cessão de quotas;
c) A exclusão de sócios;
d) A destituição de gerentes e de membros do órgão de fiscalização;
e) A aprovação do relatório de gestão e das contas do exercício, a atribuição de lucros e o tratamento dos prejuízos;
f) A exoneração de responsabilidade dos gerentes ou membros do órgão de fiscalização;
g) A proposição de acções pela sociedade contra gerentes, sócios ou membros do órgão de fiscalização, e bem assim a desistência e transacção nessas acções;
h) A alteração do contrato de sociedade;
i) A fusão, cisão, transformação e dissolução da sociedade e o regresso de sociedade dissolvida à actividade;
2. Se o contrato social não dispuser diversamente, compete também aos sócios deliberar sobre:
a) A designação de gerentes;
b) A designação de membros do órgão de fiscalização;
c) A alienação ou oneração de bens imóveis, a alienação, oneração e a locação de estabelecimento;
d) A subscrição ou aquisição de participações noutras sociedades e a sua alienação ou oneração.).
No sentido da resposta negativa a essa questão, a recorrente argumenta com a natureza de órgão interno da assembleia geral de sócios, cujas deliberações, por isso, não têm directa relevância externa, nem valem como meio de representação da sociedade, salvo no caso de faltarem todos os gerentes (art. 253/1 CSC).
Ora, a designação da assembleia geral de sócios como órgão 'deliberativo' e 'interno' pretende «exprimir o âmbito da competência do órgão limitada ao 'interior' da sociedade (propositadamente não digo relações internas), enquanto os órgãos chamados 'externos ou 'representativos' têm competências para a criação, modificação ou extinção das relações jurídicas com terceiros» (Raul Ventura, Comentário ..., cit., vol. II, 164.)
E, como refere um outro Autor (Vd. J. H. C. Pinto Furtado, in Deliberações de Sociedades Comerciais, Liv. Almedina 2005, 167-171.), é nessa perspectiva do carácter basicamente 'interno' da assembleia geral que se compreende a respectiva deliberação «como uma declaração de vontade, ciência ou sentimento dimanada pela 'sociedade' enquanto 'organização' e a ela dirigida, não como um 'sujeito de direito' voltado para outro, actual ou eventual, 'sujeito de direito'.
Enquanto 'declaração de vontade', faltar-lhe-á, pois, este 'destino para o exterior', essencial à configuração de um 'negócio jurídico', apresentando-se-nos antes, à viva luz, como um comando, norma, lei ou providência, criados no interior do 'ordenamento jurídico societário' e para seu governo.
Nos casos em que tenha a própria 'sociedade' de intervir como sujeito jurídico perante 'terceiros' p. ex., para celebrar a compra ou venda de um imóvel), a 'deliberação' será meramente habilitante da ulterior 'declaração negocial da sociedade', e não constitui, nem mesmo aí, um 'negócio jurídico'; este forma-se unicamente com a 'declaração societária', através dos seus representantes, e a do terceiro, alienante ou adquirente».
Assim sendo, e voltando ao caso dos autos, também a referenciada deliberação da assembleia geral da sociedade recorrida - diversamente do que sugere a alegação da recorrente - não produziu, por si mesma, quaisquer efeitos externos, vinculativos da mesma sociedade, designadamente, no âmbito do concurso em causa. Tal vinculação viria a ocorrer, depois, com a questionada declaração de aceitação do caderno de encargos, pela representante nomeada por essa mesma deliberação da assembleia geral dos sócios.
E há que reconhecer que esta nomeação - que, em si mesma, não produz efeitos externos à sociedade nem a vincula perante terceiros - está abrangida pelos poderes deste órgão.
É que, ainda que lhe não caiba manifestar para o exterior a vontade da sociedade, a assembleia geral de sócios - como refere Raul Ventura (Raul Ventura, Comentário ..., cit., vol. III, 46.) - «pode deliberar sobre todos os assuntos que interessem à sociedade, mesmo de gestão que normalmente seriam da competência dos gerentes». Pois que - como bem nota, ainda, o mesmo Autor (Raul Ventura, Comentário ..., cit., vol. II, 163 e segts.) - «é o órgão superior da sociedade», quer relativamente à gerência, quer relativamente ao conselho fiscal, se existir (art. 262/1 (Artigo 262º (Fiscalização):
1. O contrato de sociedade pode determinar que a sociedade tenha um conselho fiscal, que se rege pelo disposto a esse respeito para as sociedades anónimas.
2. ...), do CSC). «O primeiro índice de superioridade consiste na influência dos sócios sobre a nomeação e destituição dos outros órgãos: os gerentes e os membros do conselho fiscal são normalmente designados pelos sócios (art. 246º, nº 2, als. a) e b) e a estes pertence sempre a competência para os destituir (art. 246º, nº 1, al. d).
Dentro do largo círculo definido na lei, os sócios determinam a sua própria competência, relativamente aos gerentes (kompetenz-kompetenz). Têm também um poder geral de supervisão dos actos dos gerentes, apreciando-os, tanto no aspecto da legalidade, como no aspecto da conveniência. (...) Os sócios têm, pois, o 'poder de dar instruções' aos gerentes sobre matérias em que estes têm competência e esse poder tanto pode ser exercido por meio de deliberações normativas ou de execução permanente, como por meio de deliberações individuais que ordenem, condicionem ou proíbam a prática de certo acto».
Conclui-se, em suma, que a assembleia geral de sócios da recorrida - que, aliás, coincidem integralmente com os titulares da respectiva gerência - tinha competência para atribuir, como atribuiu, poderes de representação da sociedade, para a assinatura da declaração a que se refere o nº 1, do art. 57 (Artigo 57º (Documentos da proposta):
1 - A proposta é constituída pelos seguintes documentos:
a) Declaração do concorrente de aceitação do conteúdo do caderno de encargos, elaborada em conformidade com o modelo constante do anexo I ao presente Código, do qual faz parte integrante;
b) ...
4 - A declaração referida na alínea a) do nº 1 deve ser assinada pelo concorrente ou por representante que tenha poderes para o obrigar.
5 - ...
), do CCP. Pelo que a proposta daquela mesma recorrida, na medida em que cumpria o disposto no nº 5, desse mesmo preceito, não tinha que ser excluída, nos termos do art. 146 (Artigo 146º (Relatório preliminar):
1. ...
2. No relatório preliminar a que se refere o número anterior, o júri deve também propor, fundamentadamente, a exclusão das propostas:
a) ...
...
e) Que não cumpram o disposto nos nºs 4 e 5 do artigo 57º ... .
), nº 2, al. e), do mesmo CCP.
Pelo que, como decidiu a sentença recorrida, a deliberação camarária impugnada não violou essas ou qualquer outra das normas legais invocadas pela A. recorrente, cuja alegação é, assim, totalmente improcedente.
4. Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 8 de Julho de 2010. - Adérito da Conceição Salvador dos Santos (relator) - José António de Freitas Carvalho - Alberto Acácio de Sá Costa Reis.