Sumário:
Em recurso prejudicial, no Acórdão de 2011.03.17 - Processo C- 95/10, o Tribunal de Justiça da União Europeia declarou:
A Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitadas de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, não obriga os Estados-Membros a aplicar o seu artigo 47º, nº 2, também aos contratos relativos a serviços constantes do anexo II B desta última.
Contudo, a mesma directiva não impede os Estados-Membros e, eventualmente, as entidades adjudicantes de preverem, respectivamente, na sua legislação e na documentação relativa ao contrato, a sua aplicação.
Texto Integral:
Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1. RELATÓRIO
"A..., S.A", já devidamente identificada nos autos, interpõe para este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 150º/1 do CPTA, recurso de revista do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 10 de Setembro de 2009, proferido a fls. 697-703 vº, que, negando provimento a recurso jurisdicional, manteve sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que havia julgado improcedente a acção administrativa de contencioso pré-contratual intentada pela ora recorrente contra o Município de Sintra.
A recorrente apresenta alegações com as seguintes conclusões:
1ª A A... recorreu à capacidade financeira da sua sociedade-mãe B..., S.A. no Concurso Público Internacional para a aquisição de serviços de vigilância e segurança para instalações municipais para os anos de 2009 e 2010 lançado pela Câmara Municipal de Sintra, tendo instruído a sua proposta com o Relatório e Contas Consolidadas desta sociedade dos anos de 2005, 2006 e 2007 e com a carta de conforto subscrita pela B..., S.A. através da qual esta assume perante a Câmara Municipal de Sintra a responsabilidade pelo cumprimento das obrigações que para a A... decorram do contrato (cfr. alíneas F) e 1) da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra).
2ª A B..., S.A. cumpre o requisito de capacidade financeira exigido pelo Art.° 16° do Programa de Concurso (cfr. alínea J) da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra). 3ª O art.° 47° nº 2 da Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho
de 31 de Março de 2004 estabelece que um operador económico pode, se necessário e para um contrato determinado, recorrer às capacidades de outras entidades, independentemente do vínculo jurídico que tenha com elas.
4ª Entende o Tribunal Administrativo Sul que esta disposição da Directiva não é
aplicável ao Concurso Público Internacional em apreço porquanto resulta do disposto no art. 21° da referida Directiva que o seu art. 47° não se aplica aos contratos que tenham por objecto os serviços referidos no Anexo II B, entre os quais se encontram os serviços de segurança.
5ª Sustenta a Autora que a disposição do art. 21° da Directiva tem que ser interpretada em conformidade com o seu considerando (18) e que, como tal, apenas se refere às regras processuais constantes da Directiva e não às suas regras substantivas, como é o caso do art. 47° nº 2, as quais são, por isso, aplicáveis a todos os contratos de prestação de serviços.
6ª A questão que se coloca nos presentes autos é, pois, a de saber se o art. 47° nº 2 da Directiva 2004/18/CE é ou não aplicável aos contratos de prestação de serviços incluídos no Anexo II-B e, portanto, se é ou não aplicável ao Concurso Público Internacional em apreço o qual tem por objecto a prestação de serviços de segurança.
7ª Trata-se de uma questão de interpretação de um acto adoptado pelas instituições da Comunidade Europeia.
8ª Pelo que, e nos termos do disposto no art. 234° do Tratado que institui a Comunidade Europeia (versão consolidada publicada no JOUE nº C321E de 29/12/2006) o Supremo Tribunal Administrativo, julgando em última instância, deverá submeter esta questão prejudicial ao Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia se propender para o entendimento de que o art. 47° nº 2 da Directiva não se aplica ao Concurso Público Internacional entendimento que, segundo a Recorrente, configura uma violação pelo Estado Português do Direito Comunitário.
9ª A questão de saber se um concorrente pode, em procedimento destinado à formação de um qualquer tipo de contrato de prestação de serviços, recorrer à capacidade financeira de um terceiro é uma questão de interpretação de uma directiva comunitária que poderá ressurgir em futuros procedimentos de formação de contratos e que reclama por isso a apreciação do Supremo Tribunal Administrativo para uma melhor aplicação do direito.
10ª Até porque o novo Código dos Contratos Públicos, que procedeu à transposição da Directiva 2004/18/CE não é claro quanto à atribuição dessa faculdade com a extensão com que é admitida pela Directiva, podendo estar em causa uma transposição incorrecta dessa directiva.
11ª Trata-se de questão que se coloca quer no âmbito do Decreto-Lei nº 197/99 de 8/6, quer no âmbito do Código dos Contratos Públicos, podendo, pois, repetir-se em casos futuros.
12ª Termos porque é admissível a presente revista nos termos do disposto no art.
150° do CPTA.
13ª Fazendo uma interpretação puramente literal e formal da Directiva, entende o tribunal a quo que, por força do disposto no artigo 21° da Directiva 2004/18/CE, o art.° 47 nº 2 não é aplicável ao presente Concurso Público Internacional por se destinar à formação de um contrato de prestação de serviços incluídos no Anexo II B (v.g. segurança).
14ª De acordo com considerando (18) da Directiva os contratos públicos de serviços são divididos em dois anexos consoante as regras processuais a que estão sujeitos.
15ª As normas dos arts. 20º e 21º da directiva têm que ser interpretadas em conformidade com o seu considerando (18), pelo que das mesmas resulta apenas que aos contratos de serviços referidos no anexo II-A são aplicáveis as regras processuais previstas para os contratos públicos constantes do Título II e aos contratos de serviços referidos no anexo II-B são aplicáveis as regras processuais constantes dos artigos 23° e 35° nº 4.
16ª Porém, a directiva contém não apenas regras processuais mas também regras substantivas, as quais são aplicáveis a todos os contratos públicos.
17ª Ora, a regra do art. 47º nº 2 da directiva não é uma regra processual mas uma regra substantiva: consagra o direito do operador económico de recorrer à capacidade económico-financeira de outra entidade para concorrer.
18ª A ratio desta norma é permitir que os operadores económicos possam recorrer à capacidade económico-financeira de terceiros e assim atingir os requisitos económico-financeiros exigidos pelas entidades adjudicantes, escopo que, sozinhos, não conseguiriam atingir.
19ª O interesse público no cumprimento do contrato pelo adjudicatário fica sempre salvaguardado porquanto o terceiro garantirá esse cumprimento com a sua capacidade financeira.
20ª Ora, não faz qualquer sentido restringir este direito a determinado tipo de contratos públicos de serviços e, consequentemente, a determinados operadores económicos em detrimento de outros.
21ª Tal traduzir-se-ia numa violação dos princípios da igualdade de tratamento e de não discriminação consagrados no art. 2° da directiva.
22ª Razão porque ter-se-á de concluir que o art. 47° n.° 2 da Directiva 2004/18/CE é aplicável ao Concurso Público Internacional em apreço.
23ª O art. 47° nº 2 da Directiva 2004/18/CE produz efeito directo na ordem jurídica portuguesa, podendo consequentemente ser invocada pelos particulares perante as entidades públicas nacionais.
24ª Por se encontrar demonstrada a capacidade financeira da B..., A.A, a exclusão da A... encontra-se em clara violação do art. 47º, nº 2 da Directiva 2004/18/CE.
25ª Ao entender em sentido contrário, violou o Tribunal a quo a disposição do art. 47º, nº 2 da Directiva 2004/18/CE.
Não foram apresentadas contra-alegações:
1.3. A formação prevista no nº 5 do artigo 150º do CPTA julgou verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista, pelo acórdão de fls. 753-755 que passamos a transcrever, na parte essencial:
" (...) No caso em análise, verificam-se os pressupostos de admissão do recurso de revista excepcional.
Efectivamente, a questão que a Recorrente suscita no presente recurso - e que passa, designadamente, por apurar se o art. 47º, nº 2 da Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 31 de Março de 2004 é ou não aplicável aos contratos de serviços incluídos no anexo II - B da referida Directiva, como era o caso do concurso dos autos - é uma questão de relevância social fundamental, por, designadamente, ser susceptível de colocar-se repetidamente, numa matéria importante, como é o caso dos concursos públicos internacionais para a prestação de serviços.
Por outro lado, a resolução da mencionada questão reveste assinalável complexidade jurídica justificativa da intervenção do STA, no âmbito do recurso de revista excepcional, em ordem a contribuir para uma melhor aplicação do direito."
1.4. Pelo acórdão proferido a fls. 764/780, nestes autos, este Supremo Tribunal decidiu suspender a instância para que, em recurso prejudicial, se submetessem à apreciação do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia as seguintes questões:
1ª - O art. 47º da Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, depois de 31/1/2006, é directamente aplicável na ordem interna no sentido de que confere aos particulares um direito que estes podem fazer valer contra os órgãos da administração portuguesa?
Em caso afirmativo:
2ª - O operador económico tem que provar à entidade adjudicante a capacidade económica e financeira da entidade a que recorre?
3ª- O preceito é aplicável aos contratos que tenham por objecto os serviços referidos no anexo II B?
1.5. O Tribunal de Justiça da União Europeia, pelo acórdão de 2001.03.17 - Processo C-95/10, junto a fls. 824-834 dos autos, tendo em conta a resposta dada à segunda questão, não respondeu à primeira e, relativamente à segunda, declarou:
A Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitadas de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, não obriga os Estados-Membros a aplicar o seu artigo 47º, nº 2, também aos contratos relativos a serviços constantes do anexo II B desta última. Contudo, a mesma directiva não impede os Estados-Membros e, eventualmente, as entidades adjudicantes de preverem, respectivamente, na sua legislação e na documentação relativa ao contrato, a sua aplicação.
1.6. As partes foram notificadas da junção do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, sendo que a recorrente, pronunciando-se, terminou dizendo o seguinte:
"Pelo que deve proceder o presente recurso, concluindo-se como nas alegações apresentadas"
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2. 1. OS FACTOS
No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos:
A) A Câmara Municipal de Sintra lançou o concurso público internacional para aquisição de serviços de vigilância e segurança para instalações municipais para os anos de 2009 e 2010 (processo nº CT - 2008/8001709), que se rege pelo respectivo Programa do Concurso e Caderno de Encargos.
B) Nos termos do art. 4° do Programa de Concurso a adjudicação é feita segundo o critério da proposta global economicamente mais vantajosa.
C) O art. 100º nº1 als dl), d2), d3), d4) e e1), e2), e3), estabelece os documentos a apresentar para avaliar a capacidade económico-financeira dos concorrentes. No caso de pessoas colectivas, dispõe a al d), que é obrigatória a apresentação dos seguintes documentos:
d1) fotocópia da declaração de JRC e respectivos anexos A, referentes aos três últimos exercícios declarados ao fisco;
d2) fotocópia dos balanços analíticos e demonstração de resultados, referentes aos três últimos exercícios declarados ao fisco;
d3) declaração sobre o volume de negócios global da empresa nos três últimos exercícios findos;
d4) declaração sobre o volume de negócios da empresa, referente à prestação de serviços objecto do procedimento, nos três últimos exercícios findos - ver Programa de Concurso.
D) O art 16° do Programa de Concurso, sobre qualificação dos concorrentes, dispõe:
«1 - os documentos solicitados no art 10º do Programa de Concurso, nas als dl), d2), d3), d4), ei), e2), e3) servirão para proceder;
i) ao cálculo do indicador de Solvabilidade total - igual ou superior a
1,25,
ii) ao cálculo do indicador de financiamento do imobilizado - igual ou superior a
iii) ao cálculo do indicador autonomia financeira - igual ou superior a 0,08,
iv) ao cálculo do indicador de liquidez geral - igual ou superior a 2, v) à apreciação do volume de negócios individualizado objecto do procedimento nos três últimos exercícios findos.
2 - A análise a proceder será realizada através dos cálculos dos indicadores referidos no número anterior da seguinte forma;
i) (...).
3 - consideram-se não possuir capacidade económico-financeira para a execução da prestação de serviços, os concorrentes que apresentam;
i) uma classificação resultante da ponderação entre os valores indicativos e os das respectivas empresas, numa escala de 0 a 20 valores, inferior a 10 (excluindo todos os concorrentes que fiquem com classificação compreendida entre 9,6 e 9,9).
ii) uma média de volume de negócios individualizado objecto do procedimento em causa nos últimos três anos, inferior a 95% do valor base do concurso, (ano de 2009) de acordo com o constante do Caderno de Encargos ou Programa de Concurso. (...)».
E) A Autora concorreu ao concurso e foi admitida no acto público juntamente com as contra-interessadas.
F) A Autora A... instruiu a sua proposta, para efeitos do art. 100º, nº1, al d2) do Programa de Concurso, com o Relatório e Contas Consolidadas da B..., SA, dos anos de 2005, 2006 e 2007.
G) A Autora A... instruiu a sua proposta, para efeitos do art. 10°, no 1, al. dl) do Programa de Concurso, com a declaração de IRC e respectivos anexos A de 2007, 2006 e 2005 da Autora.
H) A Autora A... instruiu a sua proposta, para efeitos do art. 10º, n° 1, al d3) e al. d4) do Programa de Concurso, com elementos da Autora, dos anos de 2007, 2006 e 2005.
I) A Autora instruiu ainda a sua proposta com uma carta de conforto da B..., SA, em que esta declara que:
Em virtude da relação de domínio total directo entre a B... e a A... (100%), a B... é responsável pelas obrigações da mesma, nos termos do Código das Sociedades Comerciais.
Nesse sentido, declaramos que nos comprometemos a:
- garantir que a A... detém os meios técnicos e financeiros indispensáveis para a boa execução das obrigações decorrentes dos concursos;
- indemnizar a Câmara Municipal de Sintra de todos e quaisquer prejuízos sofridos, por qualquer impedimento de boa execução contratual que, ocorrendo adjudicação, venha a surgir.
J) Das contas consolidadas dos exercícios de 2005, 2006, 2007 da B... resultam os seguintes rácios e classificações:
- solvabilidade total - rácio: 1.63
classificação: 20.00
-financiamento do imobilizado - rácio: 0.77 -
classificação: 15.43
- autonomia financeira - rácio: 0.22
classificação: 20.00
- liquidez geral - rácio: 1.03
classificação: 10.30
- classificação final: 16.
K) A 17.10.2008 o júri do concurso elaborou o relatório que concluiu que todas as concorrentes tinham capacidade económico - financeira para a prestação do serviço em causa.
L) A avaliação da capacidade económico-financeira consta do anexo 1 ao relatório de 17.10.2008 e foi efectuada nos termos do art 35°, als b) e d) do DL nº 197/99, de 8.6 e do art. 16°, n° 1 e 2 do Programa do Concurso, na qual foram calculados, para cada ano, os rácios apresentados no quadro em anexo, que reflecte a sua média, com base nas três últimas declarações periódicas de rendimentos para efeitos de IRC, acompanhadas dos respectivos anexos relativos a elementos contabilísticos, bem como a média do volume de negócios realizados no decurso dos últimos três anos da sua actividade económica.
M) No quadro do anexo 1 ao relatório de 17.10.2008 consta a classificação final obtida por cada concorrente, pela média das classificações obtidas em cada um dos rácios. Assim, a Autora obteve:
- solvabilidade total - rácio: 1.61
classificação: 20.00
- financiamento do imobilizado - rácio: 0.53
classificação: 5.33
- autonomia financeira - rácio: 0.14
classificação: 20.00
- liquidez geral - rácio: 0,85
classificação: 8.52
- classificação final: 13.
N) Ainda, no relatório de 17.10.2008 o júri do concurso propôs a adjudicação à
Autora por ter obtido a maior ponderação e o menor valor financeiro ponderado.
O) Por ofício de 21.10.2008 foram os concorrentes notificados para se pronunciar por escrito sobre o relatório do júri do concurso, não sujeito a decisão final - ver doc. n° 2 junto com a petição inicial.
P) A concorrente C... pronunciou-se, nos termos que constam de fls. 11 a 30 do doc. n° 3 junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, onde, nomeadamente, diz: para a determinação dos requisitos mínimos fixados no art 16°, n° 3 do Programa de Concurso, 1) rácios financeiros, a ponderação deve ser efectuada entre os valores indicativos e os da respectiva empresa. Pelo que se conclui que cada valor indicativo deve ser ponderado face aos valores da respectiva empresa atribuindo a respectiva avaliação numa escala de 0 a 20.
O que o relatório de análise da capacidade financeira efectuou e bem (...). No entanto, em seguida efectuou nova ponderação através de uma média entre todos os valores indicativos, atribuindo nova avaliação, numa escala de 0 a 20.
Já esta segunda avaliação, efectuada através de uma média entre todos os valores indicativos, não está prevista nem no Programa de Concurso, nem em qualquer outra deliberação de definição de critérios do júri. (...). Na verdade, a avaliação através de uma média do volume de negócios dos três anos está prevista realizar no Programa de Concurso, apenas para o indicador volume de negócios.
Q) No relatório final, de 14.1.2009, o júri do concurso, na análise das alegações apresentadas em sede de audiência de interessados, considerou:
«Por fim, invoca a concorrente C... que a análise da capacidade financeira da concorrente A... viola o disposto no art 16° do Programa de Concurso, porquanto foi efectuada uma segunda ponderação, através da média entre todos os valores indicativos, atribuindo uma nova classificação, numa escala de 0 a 20, a qual não está prevista.
As análises da avaliação da capacidade financeira das empresas concorrentes a procedimentos de empreitadas ou de aquisição de bens e serviços, têm sido realizadas na Câmara Municipal de Sintra, desde a entrada em vigor do DL n° 197/99, através da avaliação dos rácios referidos nas Portarias conjuntas, que têm vindo a ser publicadas para o efeito.
Na avaliação desses rácios é normalmente utilizada a ponderação média dos valores obtidos nos anos analisados e avaliado o resultado final da média aritmética das classificações obtidas em cada um dos rácios, conforme discriminado nos respectivos Programas de Concurso.
Relativamente ao presente procedimento verificou-se que a avaliação económico-financeira dos concorrentes foi efectuada de acordo com a metodologia habitualmente utilizada. No entanto, após reclamação apresentada pela concorrente C...,, constatou-se que no Programa de Concurso não existe referência explícita à classificação média final.
Efectivamente, o nº 3 do art. 16° do Programa de Concurso refere que «consideram-se não possuir capacidade económico-financeira para a execução da prestação de serviços, os concorrentes que apresentam: z) uma classificação resultante da ponderação entre os valores indicativos e os das respectivas empresas, numa escala de 0 a 20 valores, inferior a 10)).
Assim, nos termos do Programa de Concurso do procedimento em análise, a avaliação da capacidade económico - financeira dos concorrentes deveria ter sido efectuada rácio a rácio, bastando uma classificação inferior a 10 valores, em apenas um dos rácios, para que se considerasse que o concorrente não possui capacidade económico - financeira. Considerando que no rácío de liquidez geral, a concorrente A... apresenta na média dos 3 anos analisados, e individualmente em cada um deles, um valor de rácio que, após ponderação, obtém sempre uma classificação inferior a 10, deve concluir-se que a concorrente A... demonstra não possuir capacidade económico - financeira para concorrer pelo que é de dar provimento à reclamação apresentada e excluir a referida empresa.
Em sequência do atrás especificado, e para cumprimento do referido no art 10° do Programa de Concurso, foi efectuada nova avaliação da capacidade económica e financeira para a qualificação dos concorrentes, com 4 folhas, que constitui o doc n°2 anexo ao presente relatório, na qual se verifica que a empresa A... não possui capacidade económica e financeira para executar o fornecimento em apreço.
Sendo, por conseguinte, proposta a exclusão da ora Autora e a adjudicação à C...
R) No quadro do anexo 1 ao relatório de 14.1.2009 consta a classificação obtida por cada concorrente. Assim, a Autora obteve:
- solvabilidade total - rácio: 1.613
classificação: 20.00
- financiamento do imobilizado - rácio: 0.533
classificação: 10.66
- autonomia financeira - rácio: 0.14 1
classificação: 20.00
- liquidez geral - rácio: 0,852 - classificação: 8.52
S) Por ofício de 14.1.2009 os concorrentes foram notificados para se pronunciarem por escrito sobre o relatório final do júri do concurso, não sujeito a decisão final.
T) Em sede de audiência prévia, a Autora pronunciou-se contra a decisão em projecto da sua exclusão, porquanto a mesma: a) é violadora do disposto no art. 16º n° 3 do Programa do Concurso e do princípio da concorrência, porque não efectua uma ponderação entre todos os rácios e exclui a A... unicamente com base no rácio de liquidez geral;
b) é violadora do disposto no art 47°, n° 2 da Directiva 2004/18/CE e no art 501º do CSC, porque não tem em consideração as contas consolidadas da sociedade-mãe - B...
U) A 28.1.2009 foi elaborado o 2° relatório final do júri do concurso que, em análise das alegações apresentadas em sede de audiência do interessado, decidiu que no art 16°, n° 3 do Programa de Concurso não existe uma referência explícita à classficação média final.
Assim, nos termos do Programa de Concurso do procedimento em análise, a avaliação da capacidade económico-financeira dos concorrentes deveria ter sido efectuada rácio a rácio, bastando uma classificação inferior a 10 valores, em apenas um dos rácios, para que se considerasse que o concorrente não possui capacidade económico-financeira.
Considerando que no rácio de liquidez geral, a concorrente A... apresenta na média dos 3 anos analisados, e individualmente em cada um deles, um valor de rácio que, após ponderação, obtém sempre uma classificação inferior a 10 valores, deve concluir-se que, especificadamente à luz do Programa de Concurso deste procedimento, a concorrente A... demonstra não possuir capacidade económico-financeira para concorrer, pelo que é de excluir a referida empresa. (...).
Invoca ainda a concorrente que a deliberação do júri viola o disposto no art 47°, n°2 da Directiva 2004/18/CE e no art. 501° do CSC, porque não tem em consideração as contas consolidadas da sociedade-mãe, B..., que detém a A... a 100%. Não procede porém esta alegação, desde logo, porque não foi efectuada prova, através de certidão da conservatória do registo comercial, nem que a B... detém 100% do capital social da concorrente, nem de que apresentaram contas consolidadas, nos termos do art. 3°,n°1 e 15°, n°1 do CRC.(...). Mas mesmo que assim não fosse, a verdade é que sempre teria que ser avaliada a capacidade económica financeira da empresa mãe, B..., sendo certo que relativamente a esta não foram juntos os documentos exigidos pelo Programa de Concurso, no ponto 10°, als d1) a d4), à excepção do balanço e da demonstração de resultados, pelo que o júri estava impossibilitado de avaliar a capacidade económica financeira da empresa mãe. Aliás a A... nem sequer solicitou que fosse avaliada a capacidade económica e financeira da sociedade mãe, nem sequer em sede de esclarecimentos, a concorrente teve a preocupação de solicitar esclarecimentos sobre a documentação necessária a apresentar para tal efeito, que, obviamente, nunca poderia ser menos exigente do que aquela exigida a todos os concorrentes.
De resto, a concorrente A... nada teve a opor à primeira avaliação da capacidade económica e financeira efectuada apenas com base nos elementos fornecidos referentes à própria concorrente. Por tudo isto não se entende que existe qualquer violação da directiva 2004/18/CE.
Não existe, igualmente, violação do art. 501° do CSC, na medida em que,
como se disse, não foi feita prova sobre o tipo de relação entre a concorrente e a empresa B..., desconhecendo-se se existe contrato de subordinação de gestão, ou qualquer outro documento com reflexo no regime da responsabilidade da concorrente. (...).
Não procede, assim, nenhum dos argumentos invocados, pelo que o júri deliberou manter a deliberação de adjudicação referenciada no 1° relatório final, lavrado a 14.1.2009, com a intenção de adjudicação a incidir na empresa C... (...)
V) Acto impugnado: No dia 13.2.2009, a A... foi notificada do relatório de 28.1.2009, da proposta nº 128-P/2009 e da deliberação da Câmara Municipal de Sintra, de 11.2.2009, que aprovou a proposta nº 128-P12009, que excluiu a A... do concurso e adjudicou à C... os serviços de vigilância e segurança para instalações municipais para os anos de 2009 e de 2010, com início a 1.3.2009 e terminus a 31.12.2010.
W) O contrato foi celebrado em 20.2.2009.
X) A presente acção foi instaurada em 2.3.2009.
2.2. O DIREITO
De acordo com a delimitação objectiva do âmbito do recurso jurisdicional que decorre do teor das conclusões da alegação da recorrente (art. 684º/3 C.P.C), nesta revista, este Supremo Tribunal é chamado a pronunciar-se apenas sobre se o disposto no art. 47º, nº 2 da Directiva 2004/18/CE do Parlamento e do Conselho de 31 de Março de 2004 é aplicável ao Concurso Público Internacional em apreço e, em caso afirmativo, se esta mesma norma foi violada pela entidade adjudicante.
A pronúncia do tribunal "a quo", de que "não prevendo o DL nº 197/99, de 8/6, que um concorrente possa beneficiar da capacidade financeira de outras empresas não tinham que ser consideradas as contas da B...", está excluída do presente recurso.
Este outro fundamento da decisão do TCA, de improcedência do recurso e da acção administrativa especial, não foi, oportunamente, impugnado pela recorrente, tal como decorre das conclusões, supra transcritas, da sua alegação do recurso jurisdicional.
Posto isto, importa, antes de mais, saber o que o tribunal a quo disse a respeito da aplicação da Directiva. E foi o seguinte:
"(...) Nas restantes conclusões da sua alegação a recorrente imputa à sentença a violação do art. 47° nº 2, da Directiva 2004/18/CE e do art. 501° do C. das Sociedades Comerciais, invocando que a referida norma da Directiva, porque clara, precisa e incondicional estava apta a produzir plenamente os seus efeitos desde 1/2/2006 pelo que a entidade adjudicante estava obrigada a considerar as contas consolidadas da "B..." - das quais resultava o preenchimento do requisito da capacidade financeira definida no Programa do Concurso -, sendo desnecessário que a "A..." fosse detida a 100% por esta para poder beneficiar da sua capacidade financeira.
Vejamos se lhe assiste razão.
A Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 31/3/2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços define estes últimos como os "contratos públicos que não sejam contratos de empreitada de obras públicas ou contratos públicos de fornecimento, relativos à prestação de serviços mencionados no anexo II" (cfr. art. 1º, n°2, al d).
Assim, apenas estão sujeitos à referida Directiva os processos de adjudicação da prestação dos serviços que são mencionados no anexo II a essa Directiva.
Analisando o aludido anexo, constata-se que apenas no Anexo II B, categoria 23, se encontra uma referência aos serviços de segurança.
Sobre os regimes aplicáveis aos contratos públicos de serviços, o art. 20° da Directiva estabelece que "os contratos que tenham por objecto os serviços referidos no anexo II A são adjudicados de acordo com os arts. 23° a 55°", enquanto que o art. 21° dispõe que "os contratos que tenham por objecto os serviços referidos no anexo II B estão sujeitos apenas ao art. 23° e ao nº 4 do art. 35º".
Resulta do exposto que o nº 2 do art. 47° da Directiva, referente à capacidade económica e financeira e que permite que um operador económico possa recorrer às capacidades de outras entidades independentemente da natureza jurídica do vínculo que tenha com elas, não é aplicável à adjudicação dos contratos públicos de serviços que tenham por objecto os serviços referidos no anexo II B.
Assim, ainda que se entenda que o art. 47º, nº 2, preenche os requisitos de clareza, de precisão, de suficiência e de incondicionalidade, produzindo um efeito directo na nossa ordem jurídica, sempre se terá de concluir que ele não é aplicável ao concurso público em causa nos autos, não podendo, por isso, ter sido violado pela entidade adjudicante (...).
A recorrente considera que esta decisão enferma de erro de julgamento, por incorrecta interpretação da Directiva 2004/18/CE do Parlamento e do Conselho de 31 de Março de 2004.
Sustenta a autora, em síntese, que "a disposição do art. 21º da Directiva tem que ser interpretada em conformidade com o seu considerando (18) e que, como tal, apenas se refere às regras processuais constantes da Directiva e não às suas regras substantivas, como é o caso do art. 47º, nº 2, as quais, são, por isso, aplicáveis a todos os contratos de prestação de serviços", que por força da Directiva era-lhe lícito recorrer à capacidade financeira da empresa "B..." para cumprir o requisito de capacidade financeira exigido pelo art. 16º do Programa de Concurso e que, por assim não ter julgado, o acórdão recorrido enferma de erro de julgamento.
Vejamos.
No caso em apreço, o que está em causa é saber se, sim ou não, a norma do art. 47º, nº 2 da Directiva 2004/18/CE é aplicável ao concurso internacional lançado pela Câmara Municipal de Sintra para aquisição de serviços de vigilância e segurança para instalações municipais, anunciado no Jornal Oficial das Comunidades Europeias nº 2008/S 135-181183, de 15 de Julho e na II Série do Diário da República, nº 138, de 18 de Julho de 2008.
O texto da norma é o seguinte:
«Um operador económico pode, se necessário e para um contrato determinado, recorrer às capacidades de outras entidades, independentemente da natureza jurídica do vínculo que tenha com elas. Deverá nesse caso provar à entidade adjudicante que disporá efectivamente dos recursos necessários, por exemplo, através da apresentação do compromisso de tais entidades nesse sentido.»
Este Supremo Tribunal, em recurso prejudicial, submeteu à apreciação do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia as seguintes questões:
1ª - O art. 47º da Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, depois de 31/1/2006, é directamente aplicável na ordem interna no sentido de que confere aos particulares um direito que estes podem fazer valer contra os órgãos da administração portuguesa?
Em caso afirmativo:
2ª - O operador económico tem que provar à entidade adjudicante a capacidade económica e financeira da entidade a que recorre?
3ª- O preceito é aplicável aos contratos que tenham por objecto os serviços referidos no anexo II B?
O Tribunal de Justiça da União Europeia, pelo acórdão de 2001.03.17 - Processo C-95/10, junto a fls. 824-834 dos autos, tendo em conta a resposta dada à segunda questão, não respondeu à primeira e, relativamente à segunda, declarou:
A Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitadas de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, não obriga os Estados-Membros a aplicar o seu artigo 47º, nº 2, também aos contratos relativos a serviços constantes do anexo II B desta última. Contudo, a mesma directiva não impede os Estados-Membros e, eventualmente, as entidades adjudicantes de preverem, respectivamente, na sua legislação e na documentação relativa ao contrato, a sua aplicação.
Esta pronúncia não deixa margem para dúvidas. Se a directiva não obriga a aplicar o seu artigo 47º, nº 2, também aos contratos relativos a serviços constantes do anexo II B, então, como bem decidiu o acórdão em revista, no caso concreto, a entidade adjudicante não estava obrigada a considerar as contas consolidadas da "B..." para preenchimento do requisito da capacidade financeira da recorrente "A...".
Deste modo, não se verifica o alegado erro de julgamento do tribunal a quo e, por consequência, improcede a alegação da recorrente.
3. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela autora.
Lisboa, 7 de Junho de 2011. - António Políbio Henriques (relator) - Américo Joaquim Pires Esteves - Alberto Augusto Oliveira.