Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 3 de Fevereiro de 2011 (proc. 17/11)

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Sumário:

I - Nos termos do art. 150º, nº 1 do CPTA, das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
II - Justifica-se, à luz dos apontados pressupostos, a admissão do recurso de revista excepcional que tem por objecto acórdão do TCA no qual se apreciou e decidiu a questão de saber se duas sociedades ligadas por relações jurídicas de domínio total (capital social de ambas detido a 100% por uma mesma SGPS) podem apresentar-se separadamente e com propostas autónomas ao mesmo procedimento de concurso, desde que não estejam demonstrados indícios de actos, acordos, práticas ou informações susceptíveis de falsear as regras da concorrência.

 

Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


( Relatório )
O INSTITUTO DO EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL (IEFP) recorre para este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do art. 150º, nº 1 do CPTA, do acórdão do TCA Sul, de 14.09.2010, que confirmou acórdão do TAF de Sintra, pelo qual foi julgada procedente a acção de contencioso pré-contratual contra ele intentada por A... e B..., condenando o Réu, ora recorrente, a "abster-se de excluir as propostas das Autoras «A...» e «B...» do concurso público para fornecimento de refeições e serviço de bar para o Centro de Formação Profissional da Amadora e Centro de Emprego da Amadora" e a "proceder à avaliação das aludidas propostas de acordo com os critérios definidos no Programa de Concurso e no Caderno de Encargos, se não ocorrer outro motivo de exclusão das mesmas e, consequentemente, a ordenar em 1º lugar a proposta da «A...» e a adjudicar-lhe o fornecimento objecto do referido concurso".
O fundamento da decisão recorrida, confirmativa da proferida em 1ª instância, é, no essencial, o de que duas sociedades ligadas por relações jurídicas de domínio (100% do capital social de ambas detido por uma mesma SGPS) podem apresentar-se separadamente ao mesmo procedimento de concurso, sem que isso viole o disposto no art. 54º, nº 2 do CCP, desde que apresentem propostas autónomas e diferenciadas, e não haja indícios de actos, acordos, práticas ou informações susceptíveis de falsear as regras da concorrência.
A entidade recorrente sustenta, em abono da admissibilidade da revista, que a questão nuclear decidida pelo acórdão recorrido se reveste, pela sua complexidade e relevância jurídica, de uma importância fundamental, podendo a controvérsia ultrapassar os limites do caso concreto, e que a admissão da revista é igualmente necessária a uma melhor aplicação do direito.


( Fundamentação )
O art. 150º n° 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
A jurisprudência do STA, interpretando o comando legal, tem reiteradamente sublinhado a excepcionalidade deste recurso, referindo que o mesmo só pode ser admitido nos estritos limites fixados neste preceito. Trata-se, efectivamente, não de um recurso ordinário de revista, mas antes, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n°s 92/VIII e 93/VIII, de uma "válvula de segurança do sistema" que apenas deve ser accionada naqueles precisos termos.
Deste modo, a intervenção do STA só se justificará em matérias de assinalável relevância e complexidade, sob pena de se generalizar este recurso de revista, o que não deixaria de se mostrar desconforme com os aludidos fins tidos em vista pelo legislador.
Na situação em análise, cremos que se justifica a admissão da revista, desde logo por se reconhecer que a questão suscitada no recurso, e atrás enunciada, envolve uma especial complexidade jurídica, que tem a ver com a salvaguarda dos princípios que devem presidir aos procedimentos de contratação pública, previstos no art. 1º do CCP, em especial do princípio da concorrência.
Trata-se de saber se duas sociedades ligadas por relações jurídicas de domínio total (capital social de ambas detido a 100% por uma mesma SGPS) podem apresentar-se separadamente e com propostas autónomas ao mesmo procedimento de concurso, desde que não estejam demonstrados indícios de actos, acordos, práticas ou informações susceptíveis de falsear as regras da concorrência, como decidiu o acórdão recorrido, ou se, como pretende a entidade recorrente, não é necessária uma indiciação efectiva da prática concertada ou actuação planeada desses concorrentes, bastando, para o afrontamento das regras e do princípio da concorrência, a presença dessas duas empresas no procedimento.
Tem-se em devida conta a prolação, por este STA, do recente Acórdão de 11.01.2011 - proferido em recurso de revista (Rec. 851/10), com as mesmas partes, no qual foi adoptado, com elevada elaboração jurídica e doutrinal, entendimento conforme ao do acórdão aqui recorrido.
Trata-se, porém, da primeira revista deste STA incidente sobre esta questão, e que, constituindo embora uma decisão qualificada sobre a matéria em causa, não tem ainda naturalmente o lastro de consolidação jurisprudencial.
Acresce que, confortando-se o acórdão recorrido em arestos do TJCE (acórdão "Assitur", de 19.05.2009 - Proc. C-538/07 e acórdão Michaniki, de 16/12/2008 - Proc. C-213/07), com a qualificada adesão doutrinal de Mário Esteves de Oliveira ("Estudos de Contratação Pública - II", organizados por Pedro Gonçalves, 2010, págs. 129-132), a entidade recorrente faz apelo a uma outra decisão comunitária (Ac. do TJCE de 04.06.2009 - Proc. C-8/08), que consagra entendimento algo diverso, afirmando que "Não é necessário que a concorrência seja efectivamente impedida, restringida ou falseada nem que haja uma ligação directa entre essa prática e os preços finais de venda ao consumidor. A troca de informações entre concorrentes tem um objectivo anti-concorrencial quando é susceptível de eliminar incertezas quanto à actuação planeada pelas empresas em causa" e que "sempre que a empresa que participa na concertação permaneça activa no mercado de referência, é aplicável a presunção de nexo de causalidade entre a concertação e o comportamento da referida empresa no mercado".
Por outro lado, afigura-se evidente a possibilidade de expansão da controvérsia, sendo de admitir a sua repetição em casos futuros, no âmbito dos procedimentos de contratação pública, em que reiteradamente se colocam problemas sobre a intervenção de empresas coligadas ou sujeitas a relações jurídicas de domínio, com as decorrentes implicações em matéria de actuação concertada e violação do princípio e regras da concorrência, à luz da filosofia do CCP e da legislação e jurisprudência comunitárias.
Tudo aconselha, pois, uma intervenção clarificadora do STA no sentido da consolidação de uma orientação jurisprudencial sobre a matéria.

( Decisão )
Com os fundamentos expostos, por se entenderem verificados os pressupostos exigidos pelo art. 150º, nº 1 do CPTA, acordam em admitir a revista.
Sem custas.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 2011. - Luís Pais Borges (relator) - Rosendo Dias José - José Manuel da Silva Santos Botelho.