Sumário:
Nos termos do art. 150°, n° 1 do CPTA, das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
(Relatório)
"A..." e "INSTITUTO PORTUGUÊS DE ONCOLOGIA DO PORTO FRANCISCO GENTIL, EPE (IPOPFG, EPE)", com os sinais dos autos, interpuseram para este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 150º, nº 1 do CPTA, recurso de revista do acórdão do TCA Norte, de 08.10.2010 (fls. 303 e segs.), pelo qual foi concedido provimento ao recurso jurisdicional interposto da sentença do TAF do Porto que julgara improcedente a acção administrativa de impugnação urgente, de contencioso pré-contratual, intentada por "B...", com os sinais dos autos, com vista à anulação da deliberação do Conselho de Administração do IPOPFG, EPE, de 17.12.2008, que procedeu à escolha do procedimento por ajuste directo com a primeira recorrente, para o fornecimento de um sistema de informação hospitalar e, subsidiariamente, à anulação do contrato celebrado.
O acórdão recorrido revogou a sentença na parte em que a mesma julgara insubsistente a violação do disposto no art. 24º, nº 1, al. e) do CCP, julgando a acção procedente e anulando a impugnada deliberação com fundamento nessa mesma ilegalidade.
Alegam os recorrentes que a admissão da revista se torna necessária pois que a questão que suscita nos fundamentos do recurso assume uma especial relevância jurídica e social, sendo a admissão da revista fundamental para uma melhor compreensão e aplicação do direito, designadamente do regime da escolha do procedimento por ajuste directo, previsto no citado art. 24º, nº 1, al. e) do CCP, em articulação com os arts. 1º e 2º do Código dos Direitos de Autor (CDA) e com directivas comunitárias transpostas para o ordenamento jurídico interno, estando aqui em causa matéria de protecção de direitos de exclusividade e de licenciamento de software e descompilação de programas informáticos.
A recorrida contra-alegou sustentando a inadmissibilidade do recurso, por entender não estarem verificados os pressupostos de admissão previstos no art. 150º, nº 1 do CCP, sustentando estar em causa tão só a admissibilidade do procedimento de ajuste directo (in casu, a interpretação do art. 24º, nº 1, al. e) do CCP) que tem a ver apenas com a situação concreta, e cujos contornos jurídicos se mostram correctamente analisados pelo tribunal recorrido.
(Fundamentação)
O art. 150º n° 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
A jurisprudência do STA, interpretando o comando legal, tem reiteradamente sublinhado a excepcionalidade deste recurso, referindo que o mesmo só pode ser admitido nos estritos limites fixados neste preceito. Trata-se, efectivamente, não de um recurso ordinário de revista ou da consagração de um 3º grau de jurisdição, mas antes, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n°s 92/VIII e 93/VIII, de uma "válvula de segurança do sistema" que apenas deve ser accionada naqueles precisos termos.
Deste modo, a intervenção do STA só se justificará em matérias de assinalável relevância e complexidade, ou quando haja manifesta necessidade de uma melhor aplicação do direito, sob pena de se generalizar este recurso de revista, o que não deixaria de se mostrar desconforme com os aludidos fins tidos em vista pelo legislador.
Na situação em análise, e apesar da orientação jurisprudencial restritiva atrás assinalada, cremos que se justifica a admissão da revista.
Não se olvida que neste recurso de revista excepcional o que em primeira linha está em causa não é a solução concreta do caso subjacente, não é a eliminação de eventuais erros de julgamento em que porventura tenham incorrido as instâncias, pois que para isso existem os demais recursos, ditos ordinários. O que aqui se visa é submeter à apreciação do tribunal de revista excepcional apenas questões de importância fundamental, pela sua grande relevância jurídica ou social, como tal merecedoras duma clarificação e elaboração qualificada do mais alto tribunal da jurisdição administrativa.
E não se olvida igualmente que a solução jurídica concreta a que se chegar, sobre a legalidade da escolha, in casu, pela entidade pública contratante de um procedimento de ajuste directo, se vai naturalmente reflectir em termos práticos e directos apenas no caso concreto.
Mas essa circunstância, que é comum a qualquer decisão em sede de recurso jurisdicional, não pode obviamente ser argumento para a não admissão da revista. O que importa é saber se a questão em análise assume contornos assinaláveis de relevância jurídica ou social que projectem indirectamente a decisão do tribunal de revista para a apreciação de outros casos em que a mesma questão se coloque.
Ora, na situação sujeita, as questões colocadas pelos recorrentes nas suas alegações para este STA são, no essencial, as seguintes:
- A solução contratada no âmbito do procedimento concursal - cujo visto foi recusado pelo TC - é uma solução global que comporta todos os programas de software licenciados ao IPO pela A... (titular exclusiva dos direitos de autor), licenciamento que não comporta qualquer autorização, ao IPO ou a terceiros, para que sobre ele possa haver engenharia reversa ou descompilação de programas informáticos;
- Aquando do ajuste directo, já tinham sido fornecidas pela A... as licenças de software e prestados serviços num volume de cerca de 60%.
- A descompilação de software violaria direitos autorais e as normas de protecção dos mesmos, designadamente os arts. 1º e 2º do Código dos Direitos de Autor, 3º a 7º do DL 252/94, de 20 de Outubro, bem como o art. 6º da Directiva 2009/24/CE, de 23 de Abril, do Parlamento Europeu;
- Os serviços contratados pelo IPO no âmbito do ajuste directo estão directamente relacionados com este software e com a respectiva solução global integrada, pelo que faz todo o sentido que o IPO procedesse a ajuste directo com a A... para concluir os serviços primitivamente contratados a esta empresa, titular dos referidos direitos de autor, e já parcialmente executados;
- Estão pois em causa "motivos técnicos" e de "protecção de direitos exclusivos", que, contrariamente ao decidido, são fundamento legal de escolha do procedimento de ajuste directo, nos termos do art. 24º, nº 1, al. e) do CCP.
As questões colocadas, para além do seu aspecto técnico (envolve a problemática dos direitos exclusivos ou autorais em matéria informática), confrontam o tribunal com a necessidade de um juízo de interpretação do citado preceito do CCP [art. 24°, n° 1, al. e)], à luz das directivas comunitárias a cuja transposição procedeu, em ordem a decidir pela subsunção ou não à sua previsão normativa da situação aqui em apreço, tendo em conta a complexidade técnica do caso, bem como o facto de contender com interesses especialmente relevantes da comunidade, o que envolve operações de exegese e análise jurídica com um grau de exigência e dificuldade justificativo da intervenção do tribunal de revista.
A divergência das pronúncias emitidas pelas instâncias, bem como a falta de jurisprudência deste STA sobre a matéria, justifica, deste modo, uma clarificação jurisprudencial do tribunal de revista, até porque a situação é de molde a repercutir-se em casos futuros de procedimentos concursais com idênticos objectos, admitindo-se assim a possibilidade de expansão da controvérsia.
(Decisão)
Com os fundamentos expostos, acordam em admitir a revista.
Sem custas.
Lisboa, 27 de Janeiro de 2011. - Luís Pais Borges - (Relator) - Rosendo Dias José - José Manuel da Silva Santos Botelho.