Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 22 de Abril de 2010 (proc. 275/10)

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Sumário:

Dada a sua relevância jurídica e social é de admitir a revista onde as questões a dirimir se prendem designadamente, com a interpretação do regime previsto no artº 86º do C.C.P. (Código dos Contratos Públicos) - não apresentação dos documentos de habilitação - e as consequências que do mesmo decorrem para o(s) adjudicatário(s), conjugado com a nova regulamentação instituída pela Portaria nº 701-G/2008, de 29/7.

 

Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:

 
I - RELATÓRIO
1.1. ANCP - Agência Nacional de Compras Públicas, E.P.E., vem interpor recurso de revista, ao abrigo do n.º 1, do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do TCA Sul, de 04-02-2010, que, concedendo provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo ora Recorrido A... revogou a decisão do TAF de Sintra, de 19-10-2009 e anulou a "deliberação impugnada de 03.04.2009 e a subsequente que a confirmou (decisão de 27.04.200), e demais actos cuja validade delas dependa (...), condenando, ainda, a ora Recorrente "a praticar novo acto que inclua (...)" a aqui Recorrida "entre os concorrentes cujas propostas foram adjudicadas para o lote nº 1 e habilitada a celebrar o respectivo contrato-quadro." - cfr. fls. 1060.
No tocante à admissão da revista, a Recorrente refere, nas conclusões das suas alegações, nomeadamente, o seguinte:
"(...)
"2 As questões jurídicas que carecem de apreciação por parte desse Venerando Supremo Tribunal, e que, segundo cremos, pela primeira vez se colocam nesta sede, prendem-se com a interpretação e aplicação do novo regime previsto no art. 86.º do CCP (Não apresentação dos documentos de habilitação), e as consequências que do mesmo decorrem para o (s) adjudicatário (s), conjugado com a nova regulamentação instituída pela Portaria n.º 701-G/2008, de 29 de Julho (doravante Portaria), designadamente no que concerne ao disposto nos seus arts. 36.º e segs. Relativos aos requisitos exigidos para efeitos de acesso à (e manutenção na) actividade de entidade gestora de plataformas electrónicas.
(...)
5. As questões acima enunciadas revestem-se de importância fundamental, quer pela sua relevância jurídica, quer pela sua relevância social.
6. No que respeita à relevância jurídica, é evidente que, atenta a novidade do regime jurídico em causa, se exige ao interprete e também ao julgador complexas operações de natureza lógica e jurídica indispensáveis à resolução das questões suscitadas e, por conseguinte, do caso dos autos, sendo ainda seguro que existe forte capacidade de expansão da controvérsia (indo além dos limites da situação em apreço e podendo repetir-se num número não determinado de situações futuras).
(...)
28. Com efeito, dos acórdãos já proferidos no Tribunal Central Administrativo Sul dois aderiram à interpretação e aplicação que a Recorrente fez do disposto no art. 86.º do CCP - referimo-nos ao Acórdão de 05.11.2009, Proc. N.º 05506/09, e ao Acórdão de 11.02.2010, Proc. N.º 05531/09, ambos in www. dgsi.pt, sendo que este último aresto recaiu sobre uma situação exactamente igual à dos presentes autos, pois estavam em causa os mesmos actos apreciados no acórdão aqui sob recurso, tendo-se ali julgado improcedente o recurso jurisdicional, confirmando-se assim a decisão de 1ª instância, logo a posição assumida pela ora Recorrente perante as citadas disposições do CCP, da aludida portaria n.º 701-G/2008, mas também, e sobretudo, dos arts. 3.º e 15.º do Programa de Concurso.
(...)
30. Face a tudo o que antecede, ficou plenamente demonstrada a importância fundamental das questões suscitadas perante esse Venerando Supremo Tribunal, quer pela sua relevância jurídica, quer pela sua relevância social, na medida que exigem complexas operações jurídicas indispensáveis à resolução do caso (questões novas, com relevo jurídico evidente, decorrentes da aplicação do recente Código dos Contratos Públicos e da Portaria n.º 701-G/2008, e inexistência de antecedentes jurisdicionais desse Venerando Tribunal superior) e a capacidade de expansão da controvérsia, demonstrável a partir do peso da actividade contratual pública na sociedade portuguesa, bem espelhada no constante recurso à figura do processo do contencioso pré-contratual." -cfr. fls. 1122, 1123 e 1127-.
1.2. Por sua vez, o ora Recorrido, A..., pronunciou-se pela não admissibilidade do recurso de revista, salientando, designadamente, o seguinte nas conclusões da sua alegação:
"(...)
6 Sendo esta a linha de orientação que deve ser seguida no que respeita aos conceitos legais indeterminados de "relevância jurídica ou social", "importância fundamental" e "melhor aplicação do direito", tem a mesma douta jurisprudência avançado na concretização daquele critério dizendo, pelo que respeita às duas primeiras categorias, ser necessário defrontar-nos aí com interesses de relevo comunitário particularmente elevado ou com operações jurídicas de grande complexidade carecidas de clarificação jurisdicional superior e susceptíveis de ressurgir em casos futuros.
7. Ora, in casu não se verificam tais situações, desde logo porque o Decreto-Lei n.º 278/2009, de 2 de Outubro, tal como foi aliás evidenciado no Douto Acórdão Recorrido já resolveu qualquer dúvida de interpretação suscitada pelas normas acima identificadas.
(...)
10. Logo, as questões supra mencionadas para além de não apresentarem qualquer relevância do ponto de vista jurídico e social também não necessitam de melhor aplicação do direito ou esclarecimento jurídico com o intuito de haver uma uniformização de direito.
11 De facto, a lei nova resolveu e esclareceu todas as dúvidas existentes relativamente à interpretação das normas em causa, pelo que não surgirão situações idênticas a estas no futuro, situações às quais já será aplicada a nova lei e aclara interpretação que resulta da mesma.
(...)
20. Na verdade, as questões colocadas pela Recorrente, bem como a interpretação das normas acima mencionadas não revestem particular dificuldade ao nível das operações lógico-jurídicas necessárias à sua resolução, apenas se enquadrando dentro dos parâmetros normais das controvérsias judiciárias, resolvendo-se através da aplicação de normas e princípios jurídicos que não originam qualquer dificuldade interpretativa fora do comum.
21. Mais, as questões relacionadas com a interpretação e aplicação das normas em questão não enfermam de erro grosseiro, antes se inserindo o decidido no Douto Acórdão Recorrido no espectro das soluções jurídicas plausíveis para as questões sobre que se debruçou, pelo que afastada fica a hipótese de fazer ancorar a revista numa eventual necessidade de melhor aplicação do direito.
22. Logo, de acordo com a mencionada jurisprudência, não é de admitir a revista se não se verificarem situações de particular relevância jurídica, bem como se a decisão proferida no TCA não criar grave injustiça ou se revelar uma corrente interpretativa do direito que se mostre manifestamente errónea e necessite de rectificação para uma melhor aplicação do direito (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Proc.º n.º 01139/09 de 09.12.2009)." (cfr. fls. 46, 47 e 49 das conclusões das contra-alegações)
1.3. A contra-interessada B..., veio, também, pronunciar-se pela não admissibilidade do recurso de revista, vindo dizer, em sede das suas contra-alegações, nomeadamente o seguinte:
"(...)
4. No caso, a Recorrente sustentou a relevância jurídica das questões suscitadas pela novidade do regime jurídico e pela forte capacidade de expansão da controvérsia.
5. Ora, a novidade do regime jurídico não é motivo bastante para justificar a admissibilidade de um recurso de revista sob pena de toda e qualquer matéria que esteja relacionada com uma norma entrada recentemente em vigor ser susceptível de ser enquadrada num recurso de revista.
6. Eliminando-se dessa forma a excepcionalidade deste meio processual.
(...)
12. Assim sendo, não se vislumbra qual a relevância que justifica a admissibilidade do presente recurso." (cfr. fls.2 e 3 da contra-alegação).
1.4 Cumpre decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O recurso de revista a que alude o n.º 1, do artigo 150.º do CPTA, que se consubstancia na consagração de um duplo grau de recurso jurisdicional, ainda que apenas em casos excepcionais, tem por objectivo facilitar a intervenção do STA naquelas situações em que a questão a apreciar assim o imponha, devido à sua relevância jurídica ou social e quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Por outro lado, se atendermos à forma como o Legislador delineou o recurso de revista, em especial, se olharmos aos pressupostos que condicionam a sua admissibilidade, temos de concluir que
o mesmo é de natureza excepcional, não correspondendo à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, na medida em que das decisões proferidas pelos TCA's em sede de recurso não cabe, em regra, recurso de revista para o STA.
Temos assim, que de acordo com o já exposto, a intervenção do STA só se justificará em matérias de maior importância sob pena de se generalizar este recurso de revista o que, se acontecesse, não deixaria de se mostrar desconforme com os fins obtidos em vista pelo Legislador (cfr., a "Exposição de Motivos", do CPTA).
Vejamos, então.
2.2. Na sua decisão, de 19-10-2009 o TAF de Sintra, julgou improcedente a acção administrativa especial de contencioso pré-contratual intentada pelo ora Recorrido, por ter considerado, para além do mais, que " (...) o relatório de segurança entregue pela Autora à Demandada, em 20.03.2009, não atesta a conformidade da plataforma electrónica da Autora com as normas técnicas da Portaria nº 701-G/2008, de 29.7, não cumprindo assim o requisito previsto no art 15º, al b) do Programa de Concurso (...)", salientando, ainda, não ter existido violação do disposto no artigo 38º, nº 3 da Portaria nº 701-G/2008, de 29-7, nem, tão-pouco, do princípio da igualdade (cfr. fls. 899-903).
Outra foi, contudo, a tese partilhada pelo TCA Sul, que não subscreveu a posição assumida pelo TAF de Sintra, antes concluindo, designadamente, que " (...) independentemente de se saber se estamos ou não perante uma actuação vinculada da recorrida, é manifesto que houve violação do princípio da igualdade", uma vez que, " se a vinculação impunha a caducidade da adjudicação da recorrente, então a mesma solução deveria ter sido aplicada à Vortal (...)", acrescentando, ainda, que " se ao invés, as não conformidades eram passíveis de supressão (como o foram), e como tal não se justificava a caducidade, então ambas as concorrentes deveriam ter tido tratamento igualitário.", pelo que, " não tendo existido, houve clara violação do princípio da igualdade (art.º 13.º da CRP), que, recorda-se, postula o tratamento igual de situações semelhantes e desigual no caso contrário." - cfr. fls. 1059) -
Da alegação da Recorrente decorre que a questão a dirimir passa fundamentalmente pela "interpretação e aplicação do novo regime previsto no art. 86.º do CCP (Não apresentação dos documentos de habilitação), e as consequências que do mesmo decorrem para o(s) adjudicatário(s), conjugado com a nova regulamentação instituída pela Portaria n.º 701-G/2008, de 29 de Julho(...)" (cfr. fls. 1122)
Ora, em face do que resulta dos autos, é de concluir que as questões que a Recorrente pretende ver tratadas implicam operações exegéticas de alguma dificuldade, tendo em vista esclarecer, designadamente, qual o sentido e o alcance do artigo 86.ºdo Código dos Contratos Públicos, o que evidencia a sua especial relevância jurídica.
Por outro lado, também se patenteia o relevo social da questão em análise, podendo vir a interessar a um número alargado de outros casos, existindo, por isso, uma forte capacidade de expansão da controvérsia.
É, assim, de concluir pela verificação dos pressupostos de admissão do recurso de revista.
2.3 No que concerne à peticionada atribuição de enfeito devoluto ao recurso, requerimento esse formulado pela Recorrida "B...." - cfr. as suas contra-alegações -, é de referir que a decisão quanto a tal questão não incumbe a esta "formação", por se não enquadrar na previsão do nº 5, do artigo 150º do CPTA, devendo ser decidida, oportunamente, após a distribuição dos presentes autos.


3 - DECISÃO
Nestes termos, acordam em admitir o recurso de revista do Ac. do TCA Sul, de 04-02-2010, devendo proceder-se à pertinente distribuição dos presentes autos.
Sem custas.
Lisboa, 22 de Abril de 2010. - José Manuel da Silva Santos Botelho (relator) - Rosendo Dias José - Maria Angelina Domingues.