Sumário:
Saber o que são "os parâmetros base fixados no caderno de encargos" e também "as circunstancias em que uma cláusula da proposta que não é considerada nos critérios e parâmetros usados para avaliar e adjudicar, deve ser interpretada como violadora de aspectos da execução do contrato não submetidos à concorrência" e se norma da alínea b) do n.º 2 do art.º 70.º do CCP se destina a proteger a concorrência, em termos de relevarem para a exclusão da proposta só os aspectos da execução do contrato que a prejudicam, destroem ou falseiam, são questões complexas e de relevância geral, uma vez que se repetem, pelo menos em parte dos numerosos contratos sujeitos ao regime de formação previsto no Código. Além disso são novas e sobre elas o STA não teve oportunidade de se pronunciar, pelo que se justifica a admissão de recurso de revista excepcional, nos termos do n.º 1 do art.º 150.º do CPTA.
Texto Integral:
Formação de Apreciação Preliminar
Acordam em conferência na Secção do Contencioso Administrativo do STA:
I - Relatório:
B..., S.A., intentou contra
C..., E.E.M. (entidade empresarial municipal),
e, em Agrupamento (contra-interessadas)
A... S.A. e
D..., S.A
Acção administrativa especial de contencioso pré-contratual, em que impugna o acto de adjudicação da C... a favor das contra-interessadas, no âmbito do procedimento concursal publicitado sob o número 3644/2009, por aviso publicado no DR II Série, n.º 144, de 28/07/2009, tendo por objecto a prestação de serviços e locação de viaturas e equipamentos de limpeza urbana e recolha de resíduos sólidos urbanos (RSU), no concelho de Sintra.
Peticionou a declaração de nulidade ou a anulação da adjudicação, e cumulativamente, a anulação do Acordo Quadro, ou outro contrato entretanto celebrado, bem como a condenação da entidade adjudicante a praticar os actos e operações necessários à reconstituição da situação actual hipotética.
Por sentença de 30/04/2010 o TAF julgou a acção improcedente e absolveu a autoridade demandada, assim como as contra-interessadas, dos pedidos formulados.
Inconformada, a B... intentou recurso jurisdicional junto do TCA Sul que, por Acórdão de 14/09/2010, concedeu provimento e anulou o acto impugnado, assim como o Acordo Quadro celebrado entre a R. e as contra-interessadas, condenado a R. a praticar os actos e operações materiais necessárias ao restabelecimento da situação actual hipotética.
É deste Acórdão que as Recorrentes A... e D..., assim como a entidade demandada, C..., pedem a admissão de recurso excepcional de revista, alegando estarem preenchidos os pressupostos exigidos.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Nos termos do n.º 5 do artigo 150º do CPTA, incumbe a esta formação apreciar e decidir se no presente caso estão reunidos os pressupostos legais de que depende a admissão do recurso de revista.
II - Apreciação:
1. O recurso de revista de decisões proferidas pelos TCA em segunda instância, terceira apreciação jurisdicional de uma causa administrativa é, em geral, rejeitado pela lei de processo (CPTA), embora seja permitido, a título excepcional, que o STA admita esta terceira apreciação da causa num recurso relativo a matéria de direito, exclusivamente naqueles casos em que estejam reunidos certos pressupostos que a lei (art.º 150.º n.º 1 do CPTA) aponta como índices de que a causa tem uma relevância superior ao comum. Tais pressupostos respeitam à natureza das questões sobre as quais versa o litígio, que devem atingir um grau de importância fundamental, de uma perspectiva jurídica ou social, ou mostrar-se claramente necessária a intervenção do STA para uma melhor aplicação do direito.
Assim, é mantido e aprofundado o princípio da apreciação jurisdicional das causas administrativas, como regra, apenas em duas instâncias. Na consecução deste objectivo concorrem com o disposto no art.º 150.º do CPTA, a previsão de revista "per saltum" do artigo 151.º, e a transformação do recurso para uniformização de jurisprudência num recurso do tipo acção revisiva, a ser interposto após o trânsito em julgado da decisão recorrida.
2. No caso «sub juditio», a questão controvertida prende-se com a interpretação a conferir ao artigo 30º do Caderno de Encargos do Concurso, e com a determinação do sentido e alcance a atribuir à declaração referente à "revisão de preços", emitida pelas Recorrentes A.../D... em 13/09/2009, integrada na apresentação da sua proposta. Neste concurso, uma outra concorrente - a E... - apresentou também declaração de conteúdo análogo à supra citada (cfr. pontos D e E do probatório). Mas cumpre desde já delimitar o objecto de apreciação desta formação à questão primeiramente enunciada, porquanto se reporta às partes presentes no pleito, afigurando-se assim irrelevante determinar o alcance e sentido a conferir à declaração apresentada pela concorrente E..., uma vez que esta não pediu admissão de recurso de revista.
Em causa está saber se, por via da declaração emitida em 13/09/2009, as concorrentes A.../D... violaram o princípio da estabilidade das propostas e da irreversibilidade dos preços, violando assim o regime estatuído nos artigos 300º, alínea b) do n.º 2 do artigo 70º, aplicáveis ex vi da alínea o) do n.º 2 do artigo 146º, todos do Código dos Contratos Públicos (CCP), e ainda do disposto no artigo 30º do Caderno de Encargos, bem como os princípios da legalidade e da prossecução do interesse Público.
Vejamos o teor da declaração da A.../D..., vertido no ponto F) do probatório:
"REVISÃO DE PREÇOS
A revisão de preços a praticar como consequência da alteração dos custos de mão de obra e materiais, será realizada no início do mês de Janeiro de cada ano, tendo em conta a taxa de inflação anual publicada oficialmente pelo INE".
De acordo com o artigo 30º do Caderno de Encargos do Concurso determinava-se que:
"Artigo 30º - INCLUSÃO DE NOVOS SERVIÇOS
1. De forma a obter a melhoria da prestação de serviços e corresponder às necessidades do Concelho de Sintra em termos de limpeza urbana e recolha de resíduos, o adjudicatário é obrigado a aceitar o aumento dos trabalhos da mesma espécie ou de natureza semelhante e que envolvam meios iguais aos descritos no mapa de quantidades, ou outros meios desde que similares em termos de sofisticação e preços aos descritos no mesmo mapa de quantidades.
2. Os preços unitários a praticar no caso de ampliação dos serviços serão determinados de acordo com os preços unitários da proposta do adjudicatário, afectados da revisão de preços."
As recorrentes A... e D... ficaram posicionadas em 1º lugar no citado concurso e, de acordo com o ponto K do probatório, entre elas e a entidade demandada foi celebrado em 10/02/2010 o Acordo Quadro, tendo por objecto a prestação dos serviços já identificados.
Perante este facto, a concorrente B... reagiu, impugnando o acto de adjudicação mencionado, alegando que a proposta das concorrentes vencedoras, por conter a declaração por elas emitida em 13/09/2009 referente à revisão de preços, violara o princípio da estabilidade das propostas e da irreversibilidade dos preços, infringindo assim o regime estatuído nos artigos 300º, alínea b) do n.º 2 do artigo 70º, aplicáveis ex vi da alínea o) do n.º 2 do artigo 146º, todos do Código dos Contratos Públicos (CCP), e ainda do disposto no artigo 30º do Caderno de Encargos, porquanto o n.º 2 desta cláusula não permita efectuar uma revisão de preços, o que significa que este ponto não foi submetido à concorrência, o que, de acordo com as normas citadas, deveria ter determinado a exclusão das ditas concorrentes do concurso em causa, o que não sucedeu.
Na apreciação desta questão as instâncias divergiram.
Diz o TAF:
"Concordam as partes em litígio que no Caderno de Encargos não foi prevista qualquer cláusula genérica de revisão de preços do contrato.
Neste documento (CE) existe efectivamente uma alusão à "revisão de preços". Mas esta é feita num contexto bem delimitado, a do art. 30º (...).
Importa aferir se a declaração junta pelo Contra-Interessado, o Agrupamento A.../D... (alínea F) do probatório) constitui um atributo que viola os parâmetros fixados no Caderno de Encargos.(...)
Os preços unitários a praticar com a ampliação dos serviços serão determinados de acordo com os preços unitários da proposta do adjudicatário afectados da revisão de preços. Não quanto aos serviços cujos preços unitários constam dos Anexos III e IV, e que são objecto do Acordo Quadro.
Defendem a Autoridade Demandada e o contra-interessado A.../D... que a declaração junta à proposta adjudicada, relativa à revisão de preços, se destina apenas e só à determinação do preço a pagar pelos serviços a que alude o n.º 2 do art. 30º do CE.
Embora o texto da declaração junta pelo Contra-Interessado observada isoladamente possa ter um outro sentido, aquele que a Autora pretende retirar interpretando-a como uma previsão contratual de revisão de preços, o certo é que a mesma pode também ter o fito e o sentido preconizados pela Autoridade demandada e pelo Contra-Interessado. Ou seja de que apenas vale para efeitos de determinação do método de cálculo e da periodicidade do preço unitário em caso de ampliação de serviços.
Entendida como um elemento para aferir o método de cálculo e a periodicidade (cfr. art. 300º), dos serviços descritos no art. 30º do CE, que teria de constar do respectivo contrato e concomitantemente da respectiva proposta.
Sendo o preço da proposta adjudicada de Euros 1.642.257,45 fixo para a totalidade das prestações contratuais ao longo dos oito anos de execução do Acordo Quadro, a declaração do Contra-interessado da revisão de preços, só poderá valer para além do objecto do contrato e dos preços unitários fixados nos Anexos III e IV da proposta.
Só assim tal declaração poderá ser admitida sob pena de violação do art. 70º n.º 2, alínea b) e art. 300º do CCP.
(...)
Do supra expendido, interpretando a declaração junta pelo agrupamento A.../D... como reportada à "revisão de preços" nos termos e para os efeitos do art. 30º do Caderno de Encargos, não poderia o Júri do Concurso ter excluído a sua proposta por força do disposto no artigo 70º n.º 2 alínea b) do CCP ex vi alínea o) do n.º 2 do art. 146º do CCP."
Nesta conformidade o TAF concluiu pela improcedência dos vícios imputados ao acto de adjudicação e, consequentemente, considerou prejudicada a apreciação dos demais pedidos.
Mas em sede de recurso jurisdicional, o entendimento sufragado pelo TCA foi diferente.
Disse esta instância:
"(...) apesar de reconhecer que as propostas das contra-interessadas, no tocante à revisão de preços, podem ser encaradas sob duas perspectivas, a sentença optou por aquela que é defendida pela entidade ré e pelas ditas contra-interessadas.
A questão consiste, pois, em apurar se as propostas das contra-interessadas se destinam unicamente aos trabalhos a mais previstos no artigo 30º do CE.
Para determinar o sentido das propostas neste aspecto é fundamental ter em conta que uma proposta concursal constitui uma declaração negocial, como tal submetida à disciplina dos artigos 236º e 238º do Código Civil, em que o n.º 1 do primeiro dos referidos normativos consagra a doutrina da impressão do destinatário (...)
Por outro lado, quando estejam em causa negócios formais, o art.º 238º n.º 1 do mesmo diploma estatui que o sentido correspondente à impressão do destinatário não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência, ainda que imperfeita, no texto do respectivo documento.
Pois bem, olhando para as propostas das contra-interessadas no que concerne à revisibilidade de preços, delas não resulta, salvo o devido respeito por opinião contrária, que as mesmas se cinjam ao âmbito restrito dos trabalhos a mais previstos no art.º 30º do CE."
Relativamente à proposta das recorrentes, A.../D..., disse o TCA:
"Esse sentido é ainda mais patente na proposta do agrupamento A.../D..., em que se refere que "A revisão de preços a praticar como consequência da alteração dos custos de mão de obra e materiais, será realizada no início do mês de Janeiro de cada ano, tendo em conta a taxa de inflação anual publicada oficialmente pelo INE".
Donde concluiu:
" Portanto, ao contrário do que defende a sentença, as propostas em causa deveriam ter sido excluídas por conterem, como bem se refere no douto parecer junto aos autos, "termos ou condições que violam aspectos da execução do contrato a celebrar, não submetidos à concorrência pelo Caderno de Encargos", al. b) do n.º 2 do art.º 70º , aplicável ex vi do art.º 146º n.º 2 al.o), do CPP."
As concorrentes A.../D... (vencedoras do concurso), interpõem o presente recurso de revista, no qual pedem que o STA se pronuncie quanto a "apurar se a declaração sobre "revisão de preços" que acompanha e integra a proposta do ... Agrupamento ..., se circunscreve unicamente aos trabalhos a mais previstos no art.º 30º do Caderno de Encargos (CE)" (cfr. ponto E) das conclusões de revista.
Consideram que o Acórdão recorrido sofre de "manifesta contradição lógica no seu silogismo judiciário"(cfr., os pontos M a R das conclusões de revista).
Também a entidade adjudicante pede a admissão de revista, sublinhando que "apenas submeteu à concorrência o preço a pagar pelos serviços previstos no âmbito inicial do Contrato. E que apenas este atributo das propostas foi relevado em sede de análise das mesmas, ou seja a eventual revisibilidade dos serviços a incluir, eventualmente, no âmbito do Contrato (cfr. Art. 30º do CE), foi totalmente irrelevante para efeitos de avaliação das propostas."
Assim, sustenta a C... no ponto 10 do seu articulado:
" Ora, atenta, designadamente a circunstância de: a) o caderno de Encargos prever a revisão de preços para a inclusão de novos serviços; b) a apresentação de tais declarações não interferir minimamente na análise comparativa das propostas; c) nem pôr em causa a irrevisibilidade dos preços com referência ao âmbito inicial do contrato, por os concorrentes aderirem sem reservas ao caderno de encargos, a C... entendeu, e entende, que inexiste fundamento para a exclusão das propostas dos concorrentes A.../D...".
Alega a relevância social da matéria por o contrato habilitar o Concelho de Sintra a prestar adequada e eficazmente à comunidade serviços de limpeza urbana -, assim como a relevância jurídica - que reporta à interpretação e aplicação de normas de direito substantivo que respeitam à delimitação do âmbito do espaço de liberdade contratual que o novo Código (CCP) consagra, passíveis de determinar a exclusão de propostas de um concurso público, pondo em causa o instituto da modificação objectiva do contrato - o que, segundo alega, assume relevância no actual plano jurídico da contratação nacional (cfr. ponto 17 do articulado de revista da C...).
3. Efectuando agora a síntese da questão, considerando que dois concorrentes juntaram às suas propostas declarações sobre a revisão de preços, nas quais não estava previsto serem submetidas a avaliação para efeitos de adjudicação, nem efectivamente foram consideradas, importa saber se apresentaram atributos que violem parâmetros base fixados no caderno de encargos, ou se apresentam termos ou condições que violem aspectos da execução do contrato a celebrar não submetidos à concorrência, como refere a al. b) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP.
O que tem envolvida a questão mais geral de determinar o conteúdo e alcance da previsão da norma, designadamente saber o que são "os parâmetros base fixados no caderno de encargos" e também "as circunstâncias em que uma cláusula da proposta que não é considerada nos critérios e parâmetros para avaliar e adjudicar deve ser interpretada como violadora de aspectos da execução do contrato não submetidos à concorrência". Será violadora desde que integre aspectos omissos ou pouco claros do caderno de encargos, ou dê satisfação a uma previsão contida no dito caderno que não era obrigatório integrar na proposta, ou sê-lo-á, somente quando contrariar aspectos claros do caderno de encargos ? E, o que são aspectos da execução do contrato ? Quais desses aspectos da execução do contrato devem entender-se como não submetidos à concorrência? Bastará uma declaração não conforme com a previsão de uma cláusula do caderno de encargos para serem violados aspectos da execução? Ou deverá entender-se, em caso de desconformidade, sem expressa repulsa do que consta dos documentos conformadores do concurso, que são estes que valem e se aplicam, o que tornaria irrelevantes, ao menos algumas declarações ou cláusulas discordantes da execução prevista nas peças propostas pelo dono da obra? Ou, a norma destina-se a proteger a concorrência, pelo que para a exclusão da proposta só importam os aspectos da execução do contrato que prejudicam, destroem ou falseiam a concorrência ?
Como se vê, as questões de interpretação e aplicação desta alínea b) do n.º 2 do art.º 70.º do CCP são complexas e de relevância geral, uma vez que se repetem, pelo menos em parte dos numerosos contratos sujeitos ao regime de formação previsto no Código. Além disso são novas e sobre elas o STA não teve oportunidade de se pronunciar.
Algumas das questões gerais antes referidas antevêem-se como relevantes para a decisão do caso concreto, pelo que a intervenção do STA na revista pode ser um contributo importante para a clarificação e previsibilidade na aplicação do direito.
Portanto, estão reunidos os pressupostos da importância jurídica e social fundamental que justificam a admissão da revista excepcional.
III - Decisão:
Em conformidade com o exposto, nos termos do art.º 150.º n.ºs 1 e 5 do CPTA, acordam em admitir a revista.
Sem custas nesta fase.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2011. - Rosendo Dias José (relator) - Santos Botelho - Pais Borges.