Sumário:
I - Nos termos do art. 150º, nº 1 do CPTA, das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
II - À luz da orientação jurisprudencial enunciada, justifica-se a admissão do recurso de revista excepcional interposto de um acórdão do TCA em que se suscitam questões relacionadas com os poderes do tribunal de apelação, concretamente com a interpretação e alcance do art. 149º, nº 5 do CPTA (audição prévia das partes sobre a matéria que veio a constituir fundamento de procedência da acção), e com a alegada desconformidade do prazo de execução da obra constante da proposta de um concorrente, expresso em semanas, relativamente ao disposto no Programa do Concurso e no Caderno de Encargos, expresso em dias, discutindo-se se tal desajustamento é real, e se o mesmo transforma a proposta em proposta variante, proibida pelo PC e, nessa medida, motivo de exclusão do concurso, nos termos da disposições conjugadas dos arts. 59º, nº 7 e 146º, nº 2, al. f) do CPP.
Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
( Relatório )
O MUNICÍPIO DE OVAR e A... interpuseram para este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do art. 150º, nº 1 do CPTA, recursos de revista (principal e subordinado, respectivamente) do acórdão do TCA Norte, de 27.01.2011 (fls. 158 e segs.), que confirmou, embora com fundamentação diversa, sentença do TAF de Aveiro pela qual foi julgada procedente a acção de contencioso pré-contratual intentada pela segunda recorrente contra a Câmara Municipal de Ovar, com vista à impugnação de actos administrativos relativos ao procedimento de concurso público da empreitada de obra pública "Edifício Sede da Junta de Freguesia de S. João de Ovar", adjudicada à contra-interessada B..., e que, em consequência, anulou, por violação de lei, o acto de adjudicação da empreitada, e condenou o primeiro recorrente a proferir novo acto de adjudicação a favor da A., por a respectiva proposta apresentar o preço mais baixo (único critério de adjudicação) logo a seguir ao da contra-interessada cuja proposta deveria ter sido excluída.
Quanto ao recurso principal, o recorrente Município de Ovar invoca, em abono da admissibilidade da revista, duas questões que considera de grande relevância jurídica e social, e que, em seu entender, reclamam a intervenção do STA com vista à melhor aplicação do direito:
a) Saber se o Tribunal de recurso pode conhecer, em substituição, de questão julgada prejudicada em primeira instância sem dar prévio cumprimento ao comando do art. 149º, nº 5 do CPTA (audição prévia das partes sobre a matéria que veio a constituir fundamento de procedência da acção), norma processual assim violada;
b) Saber se constitui motivo de exclusão do concurso a existência de simples divergência aparente entre um elemento da proposta, concretamente o plano de trabalhos com indicação de prazo em semanas e não em dias, e o determinado no Programa do Concurso e no Caderno de Encargos.
Quanto ao recurso subordinado, a recorrente particular, sem qualquer referência aos pressupostos de admissibilidade do recurso de revista, limita-se a alegar, em síntese, que "não pode conformar-se com tal Acórdão uma vez que, tendo em conta os fundamentos alegados, quer em sede da acção principal, quer no recurso que antecede, se entende que os Exmos Juízes do Tribunal Central Administrativo Norte deveriam ter concluído negar provimento ao recurso jurisdicional, mantendo a decisão recorrida pelos mesmos fundamentos".
( Fundamentação )
O art. 150º n° 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
A jurisprudência do STA, interpretando o comando legal, tem reiteradamente sublinhado a excepcionalidade deste recurso, referindo que o mesmo só pode ser admitido nos estritos limites fixados neste preceito. Trata-se, efectivamente, não de um recurso ordinário de revista, mas antes, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n°s 92/VIII e 93/VIII, de uma "válvula de segurança do sistema" que apenas deve ser accionada naqueles precisos termos.
Deste modo, a intervenção do STA só se justificará em matérias de assinalável relevância e complexidade, sob pena de se generalizar este recurso de revista, o que não deixaria de se mostrar desconforme com os aludidos fins tidos em vista pelo legislador.
O Supremo Tribunal Administrativo tem interpretado a norma do art. 150º como exigindo que, em relação à questão objecto de recurso de revista, seja possível entrever, "ainda que reflexamente, a existência de interesses comunitários especialmente relevantes" (Ac. de 19.06.2008 - Proc. nº 490/08), ou ainda que a mesma se relacione com "matéria particularmente complexa do ponto de vista jurídico" (Ac. de 14.04.2010 - Rec. 209/10) ou "particularmente sensível em termos do seu impacto comunitário" (Acs. de 26.06.2008 - Procs. nº 535/08 e nº 505/08), exigindo ao intérprete e ao julgador complexas operações de natureza lógica e jurídica indispensáveis à resolução das questões suscitadas.
Noutros termos, particularmente impressivos, tem-se entendido que a relevância jurídica ou social "afere-se em termos da utilidade jurídica, com capacidade de expansão da controvérsia que ultrapasse os limites da situação singular" (Acs. de 26.06.2008 e de 02.07.2008 - Procs. nºs 515/08 e 173/2008, respectivamente).
Na concretização dos conceitos relativamente indeterminados que a lei estabelece como orientação para a filtragem dos recursos de revista a admitir excepcionalmente, a aludida jurisprudência do STA tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental exigida pelo artigo 150º nº 1 do CPTA se verifica, designadamente, quando a questão a apreciar seja de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de enquadramento normativo especialmente complexo, ou da necessidade de compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis, bem como nas situações em que esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social ou da controvérsia relativamente a futuros casos do mesmo tipo, mas em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio.
A admissão da revista para melhor aplicação do direito terá lugar, designadamente, e segundo a referida jurisprudência, quando, em face das características do caso concreto, ele revele seguramente a possibilidade de ser visto como um tipo, contendo uma questão bem caracterizada, passível de se repetir em casos futuros, e cuja decisão nas instâncias seja ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, ou quando suscite fundadas dúvidas, nomeadamente por se verificar divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, gerando incerteza e instabilidade na resolução dos litígios, assim fazendo antever como objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.
No caso sub judice, e à luz da orientação jurisprudencial enunciada, entendemos que se justifica a admissão da revista requerida pelo Município de Ovar (recurso principal).
Vejamos.
A sentença da 1ª instância julgou a acção procedente, anulando o acto de adjudicação da empreitada por a proposta da adjudicatária não dar cumprimento à formalidade exigida na al. a) do nº 7 do art. 61º do CCP (identificação expressa e inequívoca dos termos de suprimento dos erros ou omissões do caderno de encargos aceites pelo órgão competente para a decisão de contratar), que é motivo de exclusão da proposta, nos termos da al. j) do nº 2 do art. 146º do mesmo Código, e, considerando prejudicada a apreciação dos demais vícios invocados, condenou a entidade demandada a proferir novo acto de adjudicação a favor da A., por a respectiva proposta apresentar o preço mais baixo (único critério de adjudicação previsto no Programa do Concurso) logo a seguir ao da contra-interessada cuja proposta deveria ter sido excluída.
O acórdão recorrido veio a manter a decisão de procedência da acção, mas com fundamentos diversos.
Julgou inverificado o vício de violação de lei que tinha sido fundamento de anulação na 1ª instância (considerando que da proposta da contra-interessada resulta evidente a identificação e o modo de suprimento dos erros aceites) e, conhecendo em substituição, nos termos do art. 149º, nº 3 do CPTA, da matéria que o TAF considerara prejudicada, anulou o impugnado acto de adjudicação por a proposta da contra-interessada violar o art. 7º do Programa do Concurso (no plano de trabalhos da proposta prevê-se um prazo de execução de 56 semanas, que consubstancia uma proposta variante expressamente vedada pelo referido art. 7º), pelo que a proposta da contra-interessada deveria ter sido excluída, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 59º/nº 7, 70º/nº 2, al. b) e 146º/nº 2, al. f) do CCP.
Insurgindo-se contra tal decisão, suscita o recorrente Município do Porto duas questões que pretende ver reapreciadas pelo tribunal de revista, e que atrás se reportaram:
c) Saber se o Tribunal de recurso pode conhecer, em substituição, de questão julgada prejudicada em primeira instância sem dar prévio cumprimento ao comando do art. 149º, nº 5 do CPTA (audição prévia das partes sobre a matéria que veio a constituir fundamento de procedência da acção), norma processual assim violada;
d) Saber se constitui motivo de exclusão do concurso a existência de simples divergência aparente entre um elemento da proposta, concretamente o plano de trabalhos com indicação de prazo em semanas e não em dias, e o determinado no Programa do Concurso e no Caderno de Encargos.
Quanto à primeira questão, reportada aos poderes do tribunal de apelação, está em causa uma prescrição similar à do art. 715º do CPCivil, que visa assegurar o contraditório relativamente a aspectos da causa que não integram o objecto imediato do recurso, e que não terão sido abordados nas alegações, questionando-se qual o alcance objectivo do preceito: se impõe ao Tribunal um dever de audição prévia em todos os casos, ou se apenas o impõe enquanto necessária medida de assegurar o contraditório (tenha-se em conta que o acórdão recorrido, ao decidir do conhecimento em substituição, assevera que "essas questões foram amplamente debatidas nos articulados", e que "não se vê necessidade de ouvir as partes sobre as mesmas, nos termos do nº 5 do mesmo diploma".
Quanto à segunda questão, prende-se a mesma com a desconformidade (afirmada pelo acórdão recorrido e negada ou, pelo menos, considerada apenas aparente pelo recorrente Município de Ovar) do prazo de execução da obra constante da proposta da contra-interessada, "de 56 semanas", relativamente ao disposto no Programa do Concurso e no Caderno de Encargos, "de 420 dias", pretendendo o recorrente que seja definido se tal desajustamento é real, e se o mesmo transforma a proposta em proposta variante, proibida pelo PC e, nessa medida, motivo de exclusão do concurso, nos termos da disposições conjugadas dos arts. 59º, nº 7 e 146º, nº 2, al. f) do CPP.
O que passará naturalmente pela análise da deliberação do júri do concurso que justificou no respectivo relatório a não exclusão da proposta com o argumento de que neste caso se deve ter em conta "as semanas completas e as semanas que resultam da soma dos dias para além da semana completa", explicação ilustrada pelo quadro nº 4, mas que foi desmontada pelo acórdão recorrido com a afirmação de falta de correspondência dos números indicados com o prazo de 56 semanas da proposta da contra-interessada.
Cremos que as questões assinaladas se revestem de manifesta relevância jurídica e social, pela capacidade de expansão da controvérsia em matéria tão sensível como a da contratação pública, e também pela ausência de uma orientação jurisprudencial definida sobre tais matérias, tudo aconselhando uma intervenção clarificadora do STA, enquanto tribunal de revista.
No que concerne ao recurso subordinado, interposto pela recorrente particular A..., e à luz da orientação jurisprudencial atrás enunciada, não vemos que se justifique minimamente a admissão do recurso interposto.
Quanto a este recurso, e como atrás se referiu, a recorrente particular, sem qualquer referência aos pressupostos de admissibilidade do recurso de revista, e sem assinalar qualquer questão jurídica que especificamente entenda de especial relevância ou complexidade, justificativa de revista excepcional deste STA, limita-se a alegar, em síntese, que "não pode conformar-se com tal Acórdão uma vez que, tendo em conta os fundamentos alegados, quer em sede da acção principal, quer no recurso que antecede, se entende que os Exmos Juízes do Tribunal Central Administrativo Norte deveriam ter concluído negar provimento ao recurso jurisdicional, mantendo a decisão recorrida pelos mesmos fundamentos".
Ou seja, a recorrente não fez, em bom rigor, qualquer apelo ao art. 150º do CPTA ou aos pressupostos do recurso de revista excepcional ali consagrado, não fornecendo indicação de qualquer "questão de importância fundamental" que entenda potenciadora da intervenção do STA em sede de revista excepcional.
O que conduz inevitavelmente a não admitir a revista.
( Decisão )
Com os fundamentos expostos, acordam em:
a) Admitir o recurso de revista interposto pelo MUNICÍPIO DE OVAR (recurso principal);
b) Não admitir o recurso de revista interposto pela recorrente particular A... (recurso subordinado).
Custas, nesta fase, apenas pela recorrente particular.
Lisboa, 12 de Maio de 2011. - Luís Pais Borges (relator) - Rosendo Dias José - José Manuel da Silva Santos Botelho.