Conclusões do Advogado-Geral no processo C-480/06 (19 de Fevereiro de 2009)

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CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
JÁN MAZÁK
apresentadas em 19 de Fevereiro de 2009 1(1)

Processo C‑480/06

Comissão das Comunidades Europeias
contra
República Federal da Alemanha

 

«Contratos públicos de serviços - Âmbito de aplicação da Directiva 92/50/CEE - Processo de adjudicação de contratos públicos de serviços - Motivos técnicos»

 

I - Introdução

1. Através da presente acção, intentada nos termos do artigo 226.° CE, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força das disposições conjugadas do artigo 8.° e dos títulos III a VI da Directiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços (2), na medida em que os Landkreise (circunscrições administrativas) de Harburg, Rotenburg (Wümme), Soltau‑Fallingbostel e Stade celebraram um contrato relativo à eliminação dos resíduos directamente com a Stadtreinigung Hamburg (Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo) e que este contrato de prestação de serviços não foi objecto de um processo de concurso público ou de concurso limitado a nível da Comunidade.

2. As regras dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços introduzidas pela Directiva 92/50 constituem uma das medidas destinadas a instituir o mercado interno ao contribuir para suprimir os entraves à livre circulação de serviços. É inegável que se trata de uma medida que beneficia tanto o prestador como o destinatário de serviços.

3. No caso em apreço, a eliminação de resíduos constitui um serviço cujos destinatários são quatro circunscrições administrativas. Na realidade, o número de destinatários é bastante mais elevado. De facto, as circunscrições administrativas são apenas intermediários em relação aos seus habitantes, que são os destinatários finais desse serviço. Parece‑me útil recordar que, se viesse a revelar‑se que um prestador de serviços fora escolhido contrariamente às exigências decorrentes do direito comunitário, os interesses mais lesados seriam os destes habitantes.

II - Quadro jurídico

4. Em conformidade com o artigo 1.°, alínea a), da Directiva 92/50, «contratos públicos de serviços» são contratos a título oneroso, celebrados por escrito entre um prestador de serviços e uma entidade adjudicante, com excepção dos contratos enumerados nas subalíneas i) a ix) da mesma disposição.

5. Segundo o artigo 1.°, alínea b), da Directiva 92/50:

«São consideradas ‘entidades adjudicantes' o Estado, as autarquias locais ou regionais, os organismos de direito público, as associações formadas por uma ou mais autarquias ou organismos de direito público. Considera‑se ‘organismo de direito público' qualquer organismo:

─ criado com o objectivo específico de satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, e

─ dotado de personalidade jurídica, e

─ financiado maioritariamente pelo Estado, por autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público, ou submetido a um controlo de gestão por parte dessas entidades, ou que tenha um órgão de administração, de direcção ou de fiscalização cujos membros são, em mais de 50%, designados pelo Estado, por autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público.

[...]»

6. Segundo o artigo 1.°, alínea c), da Directiva 92/50, considera‑se «prestador de serviços» qualquer pessoa singular ou colectiva, incluindo organismos de direito público, que ofereça serviços.

7. Nos termos do artigo 8.° da Directiva 92/50, os contratos que tenham por objecto serviços enumerados no anexo I A serão celebrados de acordo com o disposto nos títulos III a VI desta directiva. O anexo I A prevê, na categoria 16, «Esgotos e eliminação de resíduos; serviços de saneamento e afins».

8. Resulta claramente da estrutura do artigo 11.° da Directiva 92/50 que as entidades adjudicantes celebram os respectivos contratos públicos de serviços recorrendo ao processo de concurso público ou de concurso limitado, excepto nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo, nos quais as entidades adjudicantes podem celebrar contratos públicos de serviços recorrendo quer a um procedimento por negociação com publicação prévia de um anúncio (casos previstos no n.° 2) quer a um procedimento por negociação sem publicação prévia de um anúncio (casos previstos no n.° 3).

9. Nos termos do artigo 11.°, n.° 3, alínea b), da Directiva 92/50, as entidades adjudicantes podem celebrar contratos públicos de serviços recorrendo a um procedimento por negociação, sem publicação prévia de um anúncio, quando, por motivos técnicos ou artísticos, ou ainda atinentes à protecção de direitos exclusivos, os serviços apenas possam ser executados por um prestador de serviços determinado.

III - Matéria de facto

10. A acção intentada pela Comissão diz respeito a um contrato celebrado entre as circunscrições administrativas de Harburg, Rotenburg (Wümme), Soltau‑Fallingbostel e Stade (a seguir «circunscrições»), por um lado, e os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo, por outro (a seguir «contrato controvertido»).

11. Tanto as circunscrições como os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo são organismos de direito público que têm a seu cargo a eliminação de resíduos.

12. O Land da Baixa Saxónia, ao qual pertencem as circunscrições, o Land de Schleswig‑Holstein e a cidade livre e hanseática de Hamburgo formam a região metropolitana de Hamburgo.

13. O contrato controvertido foi celebrado em 18 de Dezembro de 1995, directamente, sem concurso público ou concurso limitado a nível da Comunidade. Resulta do preâmbulo do contrato que os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo propuseram às circunscrições, por carta de 30 de Novembro de 1994, uma capacidade parcial de 120 000 toneladas/ano sobre a capacidade anual total da unidade de valorização térmica de resíduos de Rugenberger Damm (a seguir «unidade de Rugenberger Damm») e que as circunscrições aceitaram esta proposta por carta de 6 de Janeiro de 1995.

14. No contrato controvertido, os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo comprometeram‑se a colocar à disposição das circunscrições uma capacidade de 120 000 toneladas/ano com vista à valorização térmica de resíduos na unidade de Rugenberger Damm e as circunscrições comprometeram‑se a pagar aos Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo uma remuneração anual composta por uma parte fixa e uma parte variável em função da quantidade entregue.

15. A duração prevista do contrato controvertido era de vinte anos a contar de 15 de Abril de 1999, uma vez que, na altura da celebração do contrato, a unidade de Rugenberger Damm estava ainda em fase de projecto.

IV - Procedimento pré‑contencioso e tramitação processual no Tribunal de Justiça

16. Na sequência da denúncia de um cidadão, que afirmava pagar taxas demasiado altas pelo tratamento de resíduos, a Comissão decidiu actuar.

17. Por considerar que, ao celebrar directamente um contrato relativo à eliminação de resíduos, cujas partes contratantes eram as circunscrições e os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo, sem recorrer a um processo de concurso e de adjudicação a nível da União Europeia, a República Federal da Alemanha poderá ter infringido as disposições conjugadas do artigo 8.° e dos títulos III a VI da Directiva 92/50, a Comissão enviou à República Federal da Alemanha, em 30 de Março de 2004, nos termos do artigo 226.° CE, uma notificação para cumprir.

18. A República Federal da Alemanha respondeu por carta de 30 de Junho de 2004. Alegou que, na sua opinião, o contrato controvertido era um acordo relativo à execução conjunta de uma missão de serviço público que incumbia às circunscrições administrativas e à cidade de Hamburgo e que, por isso, se tratava de um caso de cooperação municipal.

19. Não tendo ficado satisfeita com as observações formuladas pela República Federal da Alemanha, a Comissão dirigiu‑lhe um parecer fundamentado com data de 22 de Dezembro de 2004, no qual declarou que o contrato em causa se integrava no âmbito de aplicação da Directiva 92/50 e que, consequentemente, a celebração do contrato, directamente, entre as circunscrições e os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo era, por isso, contrária à referida directiva.

20. Apesar dos argumentos apresentados pela República Federal da Alemanha na sua resposta ao parecer fundamentado de 25 de Abril de 2005, a Comissão intentou a presente acção, através da qual pede ao Tribunal de Justiça que declare que a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força das disposições conjugadas do artigo 8.° e dos títulos III a VI da Directiva 92/50 e que condene a República Federal da Alemanha nas despesas da instância.

21. Com base nos argumentos apresentados na sua contestação e na sua tréplica, a República Federal da Alemanha pede ao Tribunal de Justiça que julgue a acção improcedente e que condene a requerente nas despesas.

22. Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 14 de Junho de 2007, o Reino dos Países Baixos e a República da Finlândia foram autorizados a intervir no presente processo em apoio dos pedidos da República Federal da Alemanha. Todavia, a República da Finlândia não apresentou articulado de intervenção.

23. A República Federal da Alemanha requereu a realização de uma audiência. Esta teve lugar em 11 de Novembro de 2008, tendo estado presentes os agentes da República Federal da Alemanha e da Comissão.

V - Apreciação

24. Na sua petição, a Comissão parte do princípio de que as circunscrições são entidades adjudicantes na acepção do artigo 1.°, alínea b), da Directiva 92/50, que os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo são um prestador de serviços na acepção do artigo 1.°, alínea c), da Directiva 92/50 e que o contrato controvertido celebrado entre as circunscrições, por um lado, e os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo, por outro, é um contrato público de serviços na acepção do artigo 1.°, alínea a), da Directiva 92/50. Uma vez que o contrato controvertido tem como objecto a prestação de um serviço que consta do anexo I A da Directiva 92/50 e que não se trata de nenhum dos casos que justificariam a adjudicação deste contrato recorrendo a um procedimento por negociação com publicação prévia de um anúncio (artigo 11.°, n.° 2, da Directiva 92/50) ou a um procedimento por negociação sem publicação prévia de um anúncio (artigo 11.°, n.° 3, da Directiva 92/50), o contrato controvertido só poderia ter sido celebrado recorrendo, se for caso disso, aos processos de concurso público ou de concurso limitado na acepção do artigo 11.°, n.° 4, da Directiva 92/50.

25. Proponho‑me analisar a justeza da acusação da Comissão sob o ângulo dos argumentos invocados pela República Federal da Alemanha, através dos quais esta não contesta que o contrato controvertido não foi objecto de um concurso, mas pretende demonstrar que as circunscrições não estavam obrigadas a proceder a um concurso para poderem celebrar o contrato controvertido, e isto por quatro razões.

26. Em primeiro lugar, o contrato controvertido é uma manifestação da cooperação entre organismos estatais e, por isso, diz unicamente respeito às relações internas da organização estatal no quadro do cumprimento de missões de serviço público. Daí resulta que o mesmo não está abrangido pela Directiva 92/50. Em segundo lugar, o contrato controvertido não constitui um contrato na acepção do artigo 1.°, alínea a), da referida directiva. Em terceiro lugar, ainda que o contrato controvertido devesse ser qualificado de contrato na acepção da Directiva 92/50, existe um motivo técnico, na acepção do artigo 11.°, n.° 3, alínea b), desta directiva, para o contrato ter sido celebrado recorrendo a um procedimento por negociação sem publicação prévia de um anúncio. Em quarto lugar, com base no artigo 86.°, n.° 2, CE, não era necessário proceder a um concurso público ou limitado, dado que tal processo teria impossibilitado que as circunscrições e os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo cumprissem a sua missão.

A)   Âmbito de aplicação da Directiva 92/50

27. Em sua defesa, a República Federal da Alemanha alega que o contrato controvertido constitui uma operação interna do Estado que, regra geral, não é abrangida pela Directiva 92/50. Entende, tal como o Governo neerlandês, que esta directiva diz respeito à adjudicação de contratos a empresas e apenas se aplica quando o Estado tenha decidido que não deseja realizar, ele próprio, uma determinada missão, mas antes obter, no mercado, a prestação do serviço correspondente.

28. A este respeito, importa recordar que o Tribunal de Justiça declarou que as directivas em matéria de adjudicação dos contratos públicos (3) são, em geral, aplicáveis quando uma entidade adjudicante equaciona a possibilidade de celebrar, com uma entidade juridicamente distinta, um contrato a título oneroso, quer esta entidade seja, ela própria, uma entidade adjudicante quer não (4). Da mesma forma, esta directiva, aplica‑se igualmente a contratos celebrados para cumprir a sua missão de satisfazer necessidades de interesse geral ou a contratos que não estejam relacionados com essa missão (5).

29. Contudo, de acordo com o Tribunal de Justiça, existe uma excepção a esta regra geral. As directivas em matéria de adjudicação de contratos públicos não são aplicáveis, ainda que o co‑contratante seja uma entidade juridicamente distinta da entidade adjudicante, quando se verifiquem duas condições. Por um lado, a autoridade pública, enquanto entidade adjudicante, deve exercer sobre a entidade juridicamente distinta em causa um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços e, por outro, esta entidade deve realizar o essencial da sua actividade com as entidades públicas que a controlam (6).

30. Foi, de resto, em virtude desta derrogação que o Tribunal de Justiça considerou que é impossível excluir, a priori, do âmbito de aplicação das directivas em matéria de adjudicação de contratos públicos as relações estabelecidas entre entidades de direito público, seja qual for a natureza destas relações (7).

31. No caso em apreço, é evidente que, tal como refere a República Federal da Alemanha, o contrato controvertido constitui um meio de cooperação entre os organismos estatais. Porém, desta circunstância, por si só, não resulta que o contrato em causa esteja excluído do âmbito de aplicação da Directiva 92/50. Concluir o contrário só seria possível se se estivessem preenchidos os dois requisitos estabelecidos, pela primeira vez, no acórdão Teckal.

32. Como a República Federal da Alemanha sublinhou acertadamente, existe ainda uma outra possibilidade de uma autoridade pública que seja uma «entidade adjudicante» na acepção do artigo 1.°, alínea b), da Directiva 92/50 afastar a aplicação desta directiva. Trata‑se da situação em que uma autoridade pública desempenha as tarefas de interesse público que lhe incumbem pelos seus próprios meios, administrativos, técnicos e outros, sem ser obrigada a recorrer a entidades externas que não pertençam aos seus serviços. Uma vez que, nesse caso, não está em questão um contrato a título oneroso celebrado com uma entidade juridicamente distinta da entidade adjudicante, não há que aplicar as disposições comunitárias em matéria de contratos públicos (8).

33. Tal significa que as autoridades públicas não são obrigadas, no cumprimento das tarefas de interesse público, a recorrer ao mercado para obter a prestação de um serviço. Têm a possibilidade de escolher entre recorrer aos seus próprios meios (neste caso, a Directiva 92/50 não é aplicável) ou ao mercado.

34. A este respeito, não comungo da opinião da República Federal da Alemanha segundo a qual, neste caso concreto, a cooperação entre duas entidades estatais distintas deve ser vista como a utilização, pela entidade adjudicante, dos seus próprios meios. Os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo não podem ser considerados um meio próprio das circunscrições em causa, que são as entidades adjudicantes.

B)   Concursos públicos de serviços na acepção do artigo 1.°, alínea a), da Directiva 92/50

35. A República Federal da Alemanha considera que o contrato controvertido não constitui um contrato público de serviços na acepção do artigo 1.°, alínea a), da Directiva 92/50, por três razões (9). Em primeiro lugar, o contrato constitui uma medida interna de cooperação mais ampla entre organismos estatais no âmbito da região metropolitana de Hamburgo. Em segundo lugar, os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo não têm, relativamente ao contrato, a qualidade de prestador de serviços, mas, pelo contrário, oferecem, enquanto organismo de direito público encarregado da eliminação dos resíduos, assistência administrativa às circunscrições que estão, igualmente, encarregadas da eliminação dos resíduos. Em terceiro lugar, no que respeita ao seu conteúdo, o contrato vai para além de um contrato público de serviços comum.

36. Considero que estes argumentos não são de molde a infirmar a conclusão de que o contrato celebrado entre as quatro circunscrições, por um lado, e os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo, por outro, constitui um contrato público de serviços na acepção do artigo 1.°, alínea a), da Directiva 92/50.

37. Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a existência de um contrato na acepção do artigo 1.°, alínea a), da Directiva 93/36 pressupõe a existência de uma convenção entre duas pessoas distintas (10).

38. No caso em apreço, este requisito está realmente preenchido. Além disso, o objecto do contrato controvertido, ou seja, a valorização térmica dos resíduos, está incluído nos serviços previstos na categoria 16 do anexo I A da Directiva 92/50.

39. Uma vez que não se pode considerar que os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo são um meio próprio das circunscrições (11), a aplicação da Directiva 92/50 só poderia excluir‑se se estivessem preenchidos os dois requisitos cumulativos de aplicação da derrogação, que referi no n.° 29 destas conclusões.

40. Assim, há que verificar se as circunscrições exercem sobre os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo um controlo análogo ao que exercem sobre os seus próprios serviços e se os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo realizam o essencial da sua actividade com as circunscrições.

41. O Tribunal de Justiça teve várias oportunidades de se debruçar sobre o requisito relativo ao «controlo análogo». Resulta da jurisprudência deste Tribunal que, para apreciar se uma autoridade pública exerce sobre o co‑contratante um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços, devem ter‑se em conta não apenas todas as disposições legislativas, mas igualmente as circunstâncias pertinentes do caso em apreço. Deve resultar deste exame que uma entidade adjudicatária está sujeita a um controlo que permite à entidade adjudicante influenciar as decisões da referida entidade. Deve tratar‑se de uma possibilidade de influência determinante tanto sobre os objectivos estratégicos como sobre as decisões importantes dessa entidade (12).

42. A República Federal da Alemanha alegou, a este respeito, que o requisito do controlo análogo estava preenchido, uma vez que as circunscrições em causa exerciam um controlo recíproco ao nível da região metropolitana de Hamburgo.

43. A este respeito, há que sublinhar que nada indica que as circunscrições tenham uma participação nos Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo e que, por isso, exerçam um controlo sobre estes.

44. De resto, como a Comissão sublinha acertadamente, os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo exercem as suas actividades em benefício das circunscrições, não por força de uma lei ou de outras disposições de direito público, mas com base num contrato. O contrato controvertido constitui o único vínculo jurídico entre as circunscrições e os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo e não confere possibilidade alguma de controlo por parte das circunscrições.

45. Em minha opinião, a referência genérica aos objectivos comuns é claramente insuficiente; um controlo deve ter uma base mais palpável.

46. O princípio do «toma lá, dá cá» sobre o qual, de acordo com a República Federal da Alemanha, assenta a cooperação no contexto da região metropolitana de Hamburgo, permite às circunscrições exercer, quando muito, um controlo indirecto sobre os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo.

47. Uma vez que, em minha opinião, o primeiro requisito de aplicação da derrogação não está preenchido, é inútil averiguar se o segundo requisito se verifica. Recordo, contudo, que a eliminação dos resíduos representa apenas uma parte das actividades dos Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo.

48. Tendo em conta o exposto, não encontro nenhum elemento que permita supor que o contrato controvertido não constitui um contrato público de serviços na acepção da Directiva 92/50. Isto significa que o contrato só podia ser celebrado em conformidade com as disposições da referida directiva.

C)   Procedimento por negociação sem publicação prévia de um anúncio enquanto excepção à regra geral do processo de adjudicação de um contrato público

49. Em sua defesa, a República Federal da Alemanha alega ainda que as circunscrições só poderiam ter celebrado o contrato controvertido com os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo dado que estes dispunham de um local assegurado para a construção de uma unidade de valorização de resíduos. O facto de, na região metropolitana de Hamburgo, não existir nenhum outro local para a construção de tais unidades e de as unidades existentes não terem capacidade disponível, constitui um motivo técnico, na acepção do artigo 11.°, n.° 3, alínea b), da Directiva 92/50, que justifica a celebração de um contrato público de serviços recorrendo a um procedimento por negociação sem publicação prévia de um anúncio.

50. Resulta claramente da estrutura do artigo 11.° da Directiva 92/50 que o n.° 3 deste artigo constitui uma excepção à regra geral contida no n.° 4 do mesmo artigo, de acordo com a qual as entidades adjudicantes celebrarão os seus contratos públicos de serviços recorrendo aos processos de concurso público ou de concurso limitado.

51. A este respeito, há que recordar que, enquanto derrogação às regras que têm por finalidade garantir a efectividade dos direitos reconhecidos pelo Tratado CE no sector dos contratos públicos de serviços, o artigo 11.°, n.° 3, da Directiva 92/50 deve ser objecto de interpretação estrita, cabendo o ónus da prova de que se encontram efectivamente reunidas as circunstâncias excepcionais que justificam a derrogação a quem delas pretenda prevalecer‑se (13).

52. O Tribunal de Justiça teve já oportunidade de analisar a existência de «motivos técnicos» no acórdão de 10 de Abril de 2003, Comissão/Alemanha (14). O Tribunal de Justiça declarou que um motivo técnico atinente à protecção do ambiente poderia eventualmente ser tomado em consideração para apreciar se o contrato em questão apenas podia ser confiado a um determinado prestador. É certo que, nesse acórdão, o Tribunal de Justiça não apresentou uma definição exaustiva de motivos técnicos, mas deferiu esses motivos pela negativa, ao enunciar os factos que não constituem motivos técnicos na acepção do artigo 11.°, n.° 3, da Directiva 92/50.

53. No acórdão de 2 de Junho de 2005, Comissão/Grécia (15), o Tribunal de Justiça considerou, a propósito do artigo 20.°, n.° 2, alínea c), da Directiva 93/38/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de celebração de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (16), que contém uma regra análoga à do artigo 11.°, n.° 3, da Directiva 92/50, que a aplicação desta disposição estava sujeita a duas condições cumulativas, ou seja, por um lado, que exista uma especificidade técnica da empreitada objecto do contrato e, por outro, que esta especificidade técnica torne absolutamente necessário que o referido contrato seja adjudicado a uma empresa determinada.

54. Considero, com base na jurisprudência referida, que a República Federal da Alemanha não provou que, no caso presente, o recurso ao artigo 11.°, n.° 3, da Directiva 92/50 era justificado.

55. Mesmo que se aceite a argumentação da República Federal da Alemanha, que se baseia na Directiva 75/442/CEE do Conselho, de 15 de Julho de 1975, relativa aos resíduos (17), isso significaria que esta directiva põe em causa a plena eficácia da Directiva 92/50.

D)   Directiva 92/50 como elemento que põe em causa o cumprimento, pelas circunscrições, da missão de eliminação dos resíduos

56. A República Federal da Alemanha alega ainda que as circunscrições e os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo, enquanto organismos de direito público encarregados da eliminação dos resíduos, apenas poderiam cumprir a sua missão através da celebração do contrato controvertido. Ora, a Directiva 92/50 obriga as circunscrições a adjudicar um contrato ao prestador de serviços que propusesse os preços mais baixos ou a proposta economicamente mais vantajosa no âmbito de um processo de concurso público ou de concurso limitado. Assim, a obrigação, que resulta da Directiva 92/50, de recorrer a um processo de concurso público ou de concurso limitado põe em causa o cumprimento da missão das circunscrições e dos Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo. Nessa medida, por força do artigo 86.°, n.° 2, CE, não é aplicável, enquanto tal, às circunscrições e aos Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo.

57. Quanto ao artigo 86.°, n.° 2, CE, nos termos do qual as empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral, ou que tenham a natureza de monopólio fiscal, ficam submetidas ao disposto no presente Tratado, designadamente às regras de concorrência, na medida em que a aplicação destas regras não constitua obstáculo ao cumprimento, de direito ou de facto, da missão particular que lhes foi confiada, o Tribunal de Justiça declarou que, uma vez que se trata de uma disposição que permite, em determinadas circunstâncias, uma derrogação às normas do Tratado, este artigo do Tratado deve ser interpretado de forma estrita (18), e que incumbe ao Estado‑Membro ou à empresa que invoca essa disposição provar que os requisitos de aplicação da mesma estão preenchidos (19).

58. Considero que a República Federal da Alemanha não cumpriu o ónus probatório que lhe cabe.

59. A argumentação da República Federal da Alemanha baseia‑se, quanto a este ponto, em duas premissas. Em primeiro lugar, se o contrato controvertido não tivesse sido celebrado, nem as circunscrições nem os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo teriam podido cumprir as suas missões em matéria de eliminação de resíduos. De facto, a unidade de Rugenberger Damm só pôde ser construída graças a este contrato. Em segundo lugar, o contrato controvertido não teria sido celebrado se as circunscrições tivessem recorrido a um processo de concurso público ou de concurso limitado, uma vez que, no âmbito desse processo, a adjudicação teria de ser feita ao prestador que apresentasse os preços mais baixos ou a proposta economicamente mais vantajosa.

60. Na minha opinião, quer a primeira quer a segunda premissa são erradas.

61. Duvido que o contrato controvertido tivesse sido o único meio de permitir o cumprimento da missão em matéria de eliminação de resíduos. Como realça, acertadamente, a Comissão, os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo teriam podido oferecer as suas capacidades disponíveis igualmente a outros interessados (20).

62. Também não considero que a aplicação do processo de concurso público ou de concurso limitado tivessem impedido a celebração do contrato tal como este foi celebrado entre as circunscrições e os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo, uma vez em que, no quadro deste processos, um contrato deve ser adjudicado ao prestador que apresente os preços mais baixos ou a proposta economicamente mais vantajosa.

63. Há que recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que os critérios que a entidade adjudicante pode tomar como base para a adjudicação de contratos podem ser, quando a adjudicação contempla a proposta economicamente mais vantajosa, diversos e variáveis consoante o contrato em questão, e que cada um dos critérios de adjudicação tomados em consideração pela entidade adjudicante a fim de identificar a proposta economicamente mais vantajosa não tem necessariamente de ser de natureza puramente económica (21). O Tribunal de Justiça afirmou expressamente que a entidade adjudicante podia ter em conta, nas várias fases de um procedimento de adjudicação de contratos públicos, critérios relativos à preservação do ambiente (22).

VI - Conclusão

64. Tendo em conta as considerações que antecedem, propomos que o Tribunal de Justiça se pronuncie do seguinte modo:

─ declarar que a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força das disposições conjugadas do artigo 8.° e dos títulos III a VI da Directiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços, na medida em que os Landkreise de Harburg, Rotenburg (Wümme), Soltau‑Fallingbostel e Stade celebraram um contrato relativo à eliminação dos resíduos directamente com os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburgo e que este contrato de prestação de serviços não foi objecto de um processo de concurso público ou de concurso limitado a nível da Comunidade;

─ condenar a República Federal da Alemanha nas despesas;

─ condenar o Reino dos Países Baixos e a República da Finlândia, partes intervenientes, a suportarem as suas próprias despesas.

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(1) Língua original: francês.
(2) JO L 209, p. 1, a seguir «Directiva 92/50».
(3) Trata‑se da Directiva 92/50, da Directiva 93/36/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de fornecimento (JO L 199, p. 1), e da Directiva 93/37/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas (JO L 199, p. 54). As três directivas sectoriais foram revogadas e substituídas pela Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO L 134, p. 114).
(4) V. acórdãos de 18 de Novembro de 1999, Teckal (C‑107/98, Colect., p. I‑8121, n.ºs 50 e 51), e de 11 de Janeiro de 2005, Stadt Halle e RPL Lochau (C‑26/03, Colect., p. I‑1, n.° 47).
(5) V., neste sentido, acórdãos de 15 de Janeiro de 1998, Mannesmann Anlagenbau Austria e o. (C‑44/96, Colect., p. I‑73, n.° 32), e Stadt Halle e RPL Lochau (referido na nota 4, n.° 26).
(6) V. acórdãos Teckal (referido na nota 4, n.° 50); de 8 de Abril de 2008, Comissão/Itália (C‑337/05, Colect., p. I-0000, n.° 36 e acórdãos aí enumerados), e de 17 de Julho de 2008, Comissão/Itália (C‑371/05, Colect., p. I-0000, n.° 22).
(7) V., neste sentido, acórdão de 13 de Janeiro de 2005, Comissão/Espanha (C‑84/03, Colect., p. I‑139, n.° 40).
(8) V. acórdão Stadt Halle e RPL Lochau (referido na nota 4, n.° 48).
(9) Mais precisamente, a Alemanha invoca quatro razões mas, na minha opinião, o argumento relativo à existência de uma «medida interna» e aqueloutro que invoca um «elemento de cooperação mais ampla» estão estreitamente ligados.
(10) V. acórdãos Teckal (referido na nota 4, n.° 49) e de 11 de Maio de 2006, Carbotermo e Consorzio Alisei (C‑340/04, Colect., p. I‑4137, n.° 32).
(11) V. n.° 34 das presentes conclusões.
(12) V. acórdãos de 13 de Outubro de 2005, Parking Brixen (C‑458/03, Colect., p. I‑8585, n.° 65); Carbotermo e Consorzio Alisei (referido na nota 10, n.° 36); de 17 de Julho de 2008, Comissão/Itália (referido na nota 6, n.° 24), e de 13 de Novembro de 2008, Coditel Brabant (C‑324/07, Colect., p. I‑0000, n.° 28).
(13) V. acórdãos de 10 de Abril de 2003, Comissão/Alemanha (C‑20/01 e C‑28/01, Colect., p. I‑3609, n.° 58), e de 18 de Novembro de 2004, Comissão/Alemanha (C‑126/03, Colect., p. I‑11197, n.° 23).
(14) Já referido na nota 13, n.ºs 58 a 67.
(15) C‑394/02, Colect., p. I‑4713, n.° 34.
(16) JO L 199, p. 84.
(17) JO L 194, p. 39; EE 15 F1 p. 129.
(18) V. acórdãos de 17 de Julho de 1997, GT‑Link (C‑242/95, Colect., p. I‑4449, n.° 50), e de 17 de Maio de 2001, TNT Traco (C‑340/99, Colect., p. I‑4109, n.° 56).
(19) V. acórdãos de 23 de Outubro de 1997, Comissão/França (C‑159/94, Colect., p. I‑5815, n.° 94); TNT Traco (referido na nota 18, n.° 59) e de 15 de Novembro de 2007, International Mail Spain (C‑162/06, Colect., p. I‑9911, n.° 49).
(20) Por último, poderia ter sido considerada a obrigação de os Serviços de Limpeza Urbana da cidade de Hamburg, na qualidade de entidade adjudicante na acepção do artigo 1.°, alínea b), da directiva 92/50, lançarem um concurso público para obter a quantidade de resíduos em falta.
(21) V. acórdão de 17 de Setembro de 2002, Concordia Bus Finland (C‑513/99, Colect., p. I‑7213, n.ºs 53 e 55).
(22) V. acórdãos Concordia Bus Finland (referido na nota 21, n.° 57) e de 10 de Abril de 2003, Comissão/Alemanha (referido na nota 13, n.° 60).