CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
PAOLO MENGOZZI
apresentadas em 29 de Junho de 2010 1(1)
Processo C‑226/09
Comissão Europeia
contra
Irlanda
«Contratos públicos - Anexo II B da Directiva 2004/18/CE - Peso dos critérios de adjudicação determinado depois do termo do prazo para apresentação das propostas e alterado após uma primeira apreciação das propostas»
1. No âmbito da presente acção por incumprimento, o Tribunal de Justiça é chamado a esclarecer em que medida o direito da União é aplicável num contrato público ao qual as directivas pertinentes impõem a aplicação de apenas algumas disposições mínimas. Em particular, trata‑se aqui de um contrato de serviços de tradução, para os quais a Directiva 2004/18/CE (2) prevê apenas a obrigação de indicar as especificações técnicas do serviço e a de publicar um anúncio da adjudicação efectuada. A Comissão considera, todavia, que à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a administração irlandesa deveria ter cumprido algumas obrigações complementares, cuja não observância está na origem da actual acção.
I - Contexto normativo
2. A legislação da União que constitui a referência fundamental no presente processo é composta pelos Tratados e pela mencionada Directiva 2004/18/CE (a seguir também «Directiva»).
3. Não existe divergência entre as partes quanto ao facto de os serviços a que se refere o presente processo figurarem no anexo II B da Directiva. Os serviços de tradução, de facto, incluem‑se, enquanto «outros serviços», na categoria 27 do referido anexo.
4. O artigo 21.° da Directiva, epigrafado «Contratos de serviços mencionados no anexo II B», prevê:
«Os contratos que tenham por objecto os serviços referidos no anexo II B estão sujeitos apenas ao artigo 23.° e ao n.° 4 do artigo 35.°».
5. O artigo 23.° da Directiva, epigrafado «Especificações técnicas», não suscita controvérsia, e o seu texto integral pode portanto ser aqui omitido. Trata‑se de um artigo muito longo e detalhado, que obriga as entidades que adjudicam contratos públicos a definirem de modo claro e exacto os requisitos da prestação solicitada, com o fim de evitar um tratamento diferenciado das pessoas que estão interessadas em celebrar o contrato com a administração.
6. O artigo 35.°, n.° 4, da Directiva prevê, por sua vez, a obrigação de as entidades adjudicantes que tenham adjudicado um contrato público enviarem um anúncio com os resultados do procedimento de adjudicação. A Comissão também não imputa à Irlanda a violação de tal norma.
II - Factos e procedimento pré‑contencioso
7. Em 16 de Maio de 2006, foi publicado no suplemento do Jornal Oficial das Comunidades Europeias um anúncio (3) relativo ao concurso, lançado pelo Governo irlandês, para a execução de serviços de tradução e interpretação no serviço responsável pelas questões dos refugiados.
8. O anúncio especificava a categoria dos serviços solicitados e fixava uma data limite (9 de Junho de 2006) para manifestar interesse em participar no concurso. Quanto às modalidades de adjudicação, indicava‑se que seria escolhida a proposta economicamente mais vantajosa, com base nos sete critérios seguintes:
1) apresentação de documentação completa;
2) capacidade declarada de satisfazer os requisitos;
3) número de lotes (4), serviços e línguas;
4) qualificações, experiência no domínio em causa;
5) preço;
6) carácter adequado das modalidades propostas;
7) locais de referência.
9. O anúncio especificava ainda que os critérios de adjudicação enumerados não deviam ser entendidos como indicados por ordem decrescente de importância.
10. Doze empresas manifestaram interesse em participar no concurso, três das quais estabelecidas fora do território irlandês.
11. Logo após o termo do prazo para apresentação das propostas, os membros da comissão do concurso receberam um esquema com a indicação do peso relativo a atribuir aos critérios de adjudicação. Esse peso oscilava entre os 0% (para o critério n.° 1, o relativo à documentação completa) e os 30% (para o critério n.° 4). No que diz respeito aos outros critérios, o esquema indicava um peso de 7% para o n.° 2, de 25% para o n.° 3, de 20% para o n.° 5, de 10% para o n.° 6 e de 8% para o n.° 7.
12. Nos dias seguintes, cada membro da comissão do concurso efectuou uma primeira apreciação, a título individual, das várias propostas apresentadas.
13. Em 22 de Junho de 2006, a comissão do concurso reuniu‑se pela primeira vez. Antes de analisar as várias propostas, decidiu alterar a ponderação dos critérios, reduzindo para 25% o peso do critério n.° 4 (antes valorado em 30%) e aumentando para 15% o peso do critério n.° 6 (antes valorado em 10%). O peso dos outros critérios manteve‑se inalterado. A comissão do concurso passou, em seguida, à avaliação das propostas e à adjudicação do contrato, utilizando a nova ponderação então aprovada.
14. A Comissão recebeu uma denúncia por parte de um concorrente que não foi seleccionado. Após uma troca de informações com a Irlanda, a Comissão emitiu uma notificação para cumprir em 23 de Outubro de 2007 e, na sequência das respostas do Governo irlandês, consideradas não satisfatórias, um parecer fundamentado em 23 de Setembro de 2008.
III - Tramitação processual no Tribunal de Justiça e pedidos das partes
15. Não satisfeita com a resposta dada pelas autoridades irlandesas ao parecer fundamentado, a Comissão intentou a presente acção por incumprimento em 19 de Junho de 2009.
16. A Comissão pede ao Tribunal que se digne:
─ declarar que, atribuindo um peso aos critérios de adjudicação de um contrato depois do termo do prazo para a apresentação de propostas, bem como alterando esse peso na sequência de uma primeira apreciação das propostas apresentadas, a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem com base nos princípios da igualdade de tratamento e da transparência, tal como são interpretados pelo Tribunal de Justiça;
─ condenar a Irlanda nas despesas.
17. A Irlanda pede ao Tribunal que se digne:
─ julgar a acção improcedente;
─ condenar a Comissão nas despesas.
IV - Quanto ao incumprimento
A) A natureza jurídica do contrato em apreço
18. Antes de analisar o incumprimento imputado, é necessário, a título preliminar, esclarecer a natureza do concurso lançado pelas autoridades irlandesas, a fim de determinar o regime jurídico aplicável ao concurso.
19. Como observei mais acima, não existe divergência entre as partes quanto ao facto de os serviços adjudicados pela administração irlandesa no âmbito do presente litígio se enquadrarem no anexo II B da directiva. Consequentemente, as únicas obrigações que a directiva impunha explicitamente eram as relativas às especificações técnicas (artigo 23.° da Directiva) e ao anúncio de adjudicação (artigo 35.°, n.° 4): sob tais aspectos, no entanto, a Comissão não teceu qualquer crítica à Irlanda.
20. É sabido, todavia, que o direito da União aplicável aos concursos públicos não é constituído apenas pelas disposições específicas constantes das directivas sobre esta matéria. Em particular, a jurisprudência do Tribunal tem sempre insistido na necessidade de não perder de vista, neste âmbito, a importância do direito primário.
21. Deve‑se recordar, com efeito, que, segundo a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, a coordenação a nível da União dos processos de adjudicação das empreitadas de obras públicas visa suprimir os entraves à livre circulação dos serviços e das mercadorias e, assim, proteger os interesses dos operadores económicos estabelecidos num Estado‑Membro que desejem propor bens ou serviços às entidades adjudicantes estabelecidas noutro Estado‑Membro (5).
22. Consequentemente, quando um concurso público apresentar um interesse transfronteiriço, mesmo que apenas potencial, devem ser aplicadas as normas que decorrem do Tratado (6). Essa aplicação acresce, é claro, à de eventuais formalidades previstas explicitamente na legislação aplicável: por exemplo, no caso em apreço, as obrigações relativas às especificações técnicas e ao anúncio de adjudicação.
23. As obrigações que derivam a tal propósito do direito primário e, em particular, dos princípios da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços, são essencialmente duas. Por um lado, as administrações devem respeitar os princípios da não discriminação em razão da nacionalidade e da igualdade de tratamento. Por outro, a fim de permitir a verificação do cumprimento de tais princípios, a administração deve submeter‑se a uma obrigação de transparência (7).
24. As partes não parecem estar realmente em desacordo sobre a existência das obrigações evocadas nos números anteriores, e nem mesmo sobre o facto de o concurso em apreço ter interesse transfronteiriço, como demonstrado quer pela decisão de o publicar no suplemento do Jornal Oficial das Comunidades Europeias (8), quer pelo facto de alguns concorrentes serem empresas não estabelecidas na Irlanda. O que se discute é se, nas circunstâncias específicas do caso, o comportamento da administração irlandesa respeitou ou não as regras que acabámos de indicar.
B) Argumentos das partes
25. A Comissão na sua curta petição, sustenta que a administração irlandesa teria violado as obrigações impostas pelo direito da União sob dois aspectos distintos, em ambos os casos violando os princípios da igualdade de tratamento e da transparência impostos pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.
26. Em primeiro lugar, o comportamento das autoridades irlandesas seria ilegal pelo facto de a ponderação dos critérios de adjudicação do contrato ter sido efectuada depois do termo do prazo para apresentação de propostas.
27. Em segundo lugar, ilegal teria sido também o facto de alterar tal ponderação depois de ter efectuado uma primeira apreciação das propostas apresentadas.
28. A Comissão observa ainda que, no convite para apresentação de proposta enviado às empresas após o anúncio publicado no Jornal Oficial, já não constava a indicação de que os critérios de adjudicação não eram indicados por ordem decrescente de importância, de modo que os participantes no concurso podiam razoavelmente crer que esta seria, nessa altura, a ordem de indicação dos critérios. Visto que, pelo contrário, a ponderação não atribuiu aos critérios peso proporcional à sua posição na lista, as autoridades irlandesas teriam induzido em erro os concorrentes. Na réplica, a Comissão precisou, todavia, que a questão da ordem específica de indicação dos critérios não constitui a base da sua acção que se fundamenta, portanto, apenas nos dois aspectos indicados: determinação do peso relativo dos critérios efectuado depois do termo do prazo para a apresentação de propostas e alteração dessa determinação em sequência de uma apreciação preliminar das propostas por cada membro da comissão do concurso.
29. A Irlanda, por seu lado, no essencial, reconhece os factos tal como expostos pela Comissão (9), ainda que negue que os mesmos configurem uma violação do direito da União.
30. Em particular, o Governo irlandês sublinha que a alteração feita em 22 de Junho aos critérios foi mínima (uma redução de 5% do peso atribuído ao critério n.° 4 e um correspondente aumento de 5% do peso atribuído ao critério n.° 6), de todo insuficiente para favorecer ou desfavorecer um concorrente relativamente a outro. Com efeito, uma análise retrospectiva demonstra que o concorrente vencedor teria obtido o contrato mesmo com base nos critérios inicialmente ponderados.
31. O Governo irlandês considera que, visto que não teria existido qualquer violação do princípio da igualdade de tratamento dos concorrentes, a apreciação do cumprimento do princípio da transparência não seria sequer necessária, posto que a jurisprudência do Tribunal considera este segundo princípio como meramente acessório relativamente ao primeiro.
C) Apreciação
32. Por razões lógicas e de clareza da argumentação, iniciarei a minha apreciação dos aspectos jurídicos do presente processo com algumas observações relativas ao princípio da transparência no âmbito de contratos públicos. Passarei, depois, à apreciação das duas críticas da Comissão, para dedicar, por fim, algumas notas a um aspecto que, segundo me parece, foi erradamente ignorado pelas partes.
1. Quanto ao princípio da transparência
33. A Irlanda sustenta, como se viu, que o princípio da transparência em matéria de contratos tem natureza subsidiária relativamente aos princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação: consequentemente, na sua opinião, uma vez verificado que estes dois princípios não foram violados, seria supérfluo examinar o cumprimento do princípio da transparência.
34. A fundamentação da Irlanda não pode ser aceite.
35. É verdade que, na lógica que inspira a jurisprudência assente nesta matéria, o princípio da transparência tem uma função acessória relativamente aos da igualdade de tratamento e da não discriminação. Todavia, tal acessoriedade não implica uma subordinação, com a consequência preconizada pelo Governo irlandês. Pelo contrário, a obrigação de transparência é acessória no sentido de que o seu cumprimento permite verificar se as outras duas obrigações «principais» foram cumpridas. Se a administração não agir de modo transparente, torna‑se difícil, mesmo impossível, verificar se esta eventualmente violou as obrigações de igualdade de tratamento e de não discriminação.
36. Além disso, o cumprimento da obrigação de transparência é uma condição preliminar indispensável para garantir que todos os potenciais concorrentes sejam informados de modo adequado sobre o contrato, de forma a respeitar a igualdade de tratamento (10).
37. Consequentemente, se estiverem reunidos os requisitos fixados pela jurisprudência para a aplicação a um contrato dos princípios que decorrem do direito primário da União, o cumprimento do princípio da transparência deve ser sempre verificado. Aliás, do ponto de vista lógico pode considerar‑se, eventualmente, que a sua verificação deve ser prévia à do respeito dos princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação.
2. Quanto à primeira crítica da Comissão
38. Na primeira crítica, a Comissão imputa à Irlanda, como se viu, o facto de ter definido o peso dos vários critérios de adjudicação após o termo do prazo para apresentação de propostas. Essa determinação tardia teria violado os princípios da igualdade de tratamento e da transparência.
39. Esta primeira crítica não me parece merecedora de provimento, pelas razões que seguem.
40. Em primeiro lugar, é pacífico que a directiva não impunha que fosse indicado previamente o peso dos critérios de adjudicação. Com efeito, como a própria Comissão reconhece na sua acção, o artigo 40.° da directiva, que prevê uma obrigação deste tipo no seu n.° 5, alínea e), não era aplicável ao concurso em causa. Com efeito, para ser preciso, no presente caso a directiva também não impunha uma prévia indicação dos critérios de adjudicação, que, no entanto, foi feita pelas autoridades irlandesas.
41. Em segundo lugar, tal obrigação também não resulta da jurisprudência. Em particular, pode‑se invocar por analogia uma decisão do Tribunal que, num caso inteiramente sujeito às directivas sobre os contratos públicos, reconheceu a legalidade do comportamento de uma administração que tinha ponderado os sub‑elementos de um critério de adjudicação após a apresentação das propostas, mas antes da abertura dos envelopes que as continham (11).
42. Naturalmente, deve‑se colocar a questão de saber se a obrigação de indicar logo no anúncio o peso dos vários critérios de adjudicação pode ser considerada uma consequência natural do dever de respeitar os princípios da igualdade de tratamento, da não discriminação e da transparência. Não me parece, todavia, em particular à luz da jurisprudência do Tribunal, que possa ser esse o caso.
43. Na jurisprudência relativa aos contratos aos quais se aplicam todas as disposições das várias directivas na matéria, a obrigação de informar previamente os concorrentes sobre os critérios de adjudicação (obrigação, é bom recordá‑lo, explicitamente prevista pelas normas em tais casos) é considerada a expressão dos princípios da igualdade de tratamento e da transparência (12). Ainda de acordo com tal jurisprudência, além disso, dos referidos princípios decorrem a obrigação de interpretar os critérios de adjudicação de modo uniforme no decurso de todo o processo (13) e a proibição de alterar, durante o concurso, os critérios de adjudicação (14).
44. É claro que, na Directiva 2004/18/CE, a obrigação de indicar previamente o peso dos critérios de adjudicação dos concursos totalmente sujeitos à aplicação da directiva corresponde também à exigência de garantir o cumprimento dos princípios da igualdade de tratamento e da transparência. Todavia, parece‑me necessário evitar considerar automaticamente idêntico o alcance que os princípios em discussão têm nos contratos sujeitos à directiva e nos contratos a ela não sujeitos (ou, como no caso em pareço, apenas em parte sujeitos). Se, com efeito, se considerasse que a transparência imposta aos contratos excluídos da aplicação da directiva fosse necessariamente idêntica à imposta aos contratos que a ela estão sujeitos, abrir‑se‑iam as portas para aplicar, de modo sub‑reptício, a directiva a toda uma série de casos aos quais o legislador explicitamente considerou não dever aplicá‑la. Numa certa medida, de facto, toda a directiva tem como função realizar os princípios fundamentais do Tratado (15): se o único modo de realizar tais princípios em matéria de concursos fosse o previsto na directiva, só restaria aplicá‑la em todos os casos em que exista um interesse transfronteiriço.
45. Em geral, as vias práticas para garantir o cumprimento dos princípios do Tratado, nos âmbitos de não aplicação ou de aplicação apenas parcial da directiva, não podem ser totalmente definidas, e devem ser avaliadas caso a caso (16).
46. Ora, no caso em apreço a administração irlandesa publicou um anúncio, e nele indicou os critérios de adjudicação, ainda que sem lhes atribuir o peso relativo. Considero que, à luz das considerações desenvolvidas nos números anteriores, não houve uma violação dos princípios de proibição de discriminação, da igualdade de tratamento e da transparência. A administração adjudicante forneceu mais informações do que a directiva lhe impunha comunicar, e não criou desigualdade entre os potenciais concorrentes.
47. De facto, como realçou a jurisprudência, o objectivo da obrigação de transparência é, em princípio, o de garantir a todos os potenciais concorrentes um grau de publicidade adequado, que permita uma efectiva abertura à concorrência, bem como um controlo da imparcialidade dos procedimentos de adjudicação (17). No presente caso, a opção de utilizar o suplemento do Jornal Oficial das Comunidades Europeias deve ser sem dúvida considerada adequada para publicitar de modo suficiente o procedimento do concurso para adjudicação do contrato.
48. Em seguida, quanto aos princípios da não discriminação e da igualdade de tratamento, o facto de ponderar os critérios depois da apresentação das propostas não criou, por si mesmo, qualquer diferença de tratamento entre os concorrentes, que foram colocados num plano de igualdade.
49. Por outro lado, deve‑se observar que a apreciação da primeira crítica da Comissão deveria ser diferente caso a administração adjudicante tivesse indicado no concurso os critérios de adjudicação enumerando‑os por ordem decrescente de peso. Em tal caso, a administração teria modificado o peso dos critérios no decurso do processo: como se viu mais acima, de facto, o peso atribuído aos critérios não tem aqui qualquer relação com a ordem da sua enumeração no anúncio, e os critérios mais importantes para a adjudicação eram os indicados na terceira e na quarta posição.
50. Todavia, embora a Comissão tenha sugerido na sua petição que a lista dos critérios constante do anúncio e da posterior carta‑convite era susceptível de indicar uma enumeração por peso decrescente de importância, vários elementos contradizem tal afirmação.
51. Em primeiro lugar, no anúncio publicado no Jornal Oficial estava expressamente indicado que a ordem dos critérios não reflectia o seu peso relativo.
52. Em segundo lugar, o primeiro dos critérios indicados era o da apresentação da documentação completa. Ora, nenhum concorrente minimamente atento poderia considerá‑lo como o principal critério de adjudicação: com efeito, a sua própria natureza parece ser mais a de uma condição de admissão ao concurso do que a de um critério de adjudicação e, não por acaso, foi‑lhe atribuído, em seguida, um peso de 0% (18).
53. Em terceiro lugar, na réplica, a própria Comissão parece ter, senão abandonado, pelo menos moderado certamente a sua posição relativamente à ordem decrescente de importância dos critérios de adjudicação. Esta opção da Comissão parece‑me totalmente correcta mas, ao mesmo tempo, priva a primeira crítica do seu único pilar sólido possível.
54. Consequentemente, considero que a primeira crítica da Comissão deve ser julgada improcedente.
3. Quanto à segunda crítica da Comissão
55. Na sua segunda crítica, recordo‑o, a Comissão sustenta que a Irlanda teria violado os princípios da igualdade de tratamento e da transparência alterando a ponderação dos critérios de adjudicação depois de uma primeira apreciação sumária das propostas apresentadas.
56. Os factos, como observei mais acima, são pacíficos e não contestados. A alteração do peso dos critérios teve lugar, efectivamente, alguns dias depois da primeira determinação desse peso. No momento da alteração, a comissão do concurso não tinha ainda iniciado os seus trabalhos, mas os seus membros tinham podido examinar, a título individual, as propostas apresentadas.
57. A segunda crítica, diferentemente da primeira, deve ser julgada procedente.
58. Já recordei mais acima que o direito comunitário, como é interpretado pelo Tribunal de Justiça, considera incompatível com os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação qualquer alteração dos critérios de adjudicação que ocorra no decurso do processo (19). Isto é exactamente o que se verificou no presente caso.
59. Não afecta esta constatação o facto de a comissão do concurso ter iniciado os seus trabalhos, enquanto órgão colegial, depois da alteração final dos critérios de adjudicação. O efeito útil do princípio que impõe que os critérios não sejam alterados no decurso do processo de adjudicação seria, de facto, completamente anulado se não se considerasse, para todos os efeitos, como parte do processo uma fase em que, antes da reunião da comissão de concurso, os membros da mesma examinam as propostas apresentadas pelos concorrentes.
60. Também o facto de a primeira definição do peso dos critérios não ter sido um acto oficial, mas apenas uma espécie de «proposta preliminar», não elimina a ilegalidade do comportamento da administração. É, com efeito, na minha opinião, indispensável, a fim de garantir a igualdade de tratamento dos concorrentes, que o peso dos critérios de adjudicação seja determinado antes de as propostas serem apreciadas, ainda que apenas a título individual, pelos membros da comissão do concurso. As operações de ponderação dos critérios, por um lado, e de avaliação das propostas, por outro, devem ser estritamente separadas. Uma eventual «reflexão comum» dos membros da comissão do concurso sobre o peso a atribuir aos vários critérios deveria ter acontecido, para ser legal, antes de qualquer apreciação das propostas.
61. Devem ser julgados improcedentes, também, os argumentos do Governo irlandês baseados no facto de que o vencedor do concurso não teria mudado aplicando aos vários critérios o peso originariamente estabelecido, em vez do resultante da alteração posterior.
62. Deve‑se, de facto, recordar que, segundo a jurisprudência assente, no âmbito das acções por incumprimento não existe qualquer requisito relativo ao interesse em agir (20). O objectivo do processo é o de verificar a existência ou não de uma violação do direito da União, e não o de analisar as consequências que derivam de tais violações. Portanto, o facto de que o processo teria tido um resultado igual aplicando aos critérios de adjudicação o peso que lhes foi inicialmente atribuído não tem qualquer consequência quanto à avaliação da consistência ou não do incumprimento.
63. Em conclusão, a segunda das críticas apresentadas pela Comissão tem fundamento e deve ser julgada procedente.
4. Quanto à possível ilegalidade da atribuição de peso nulo a um critério
64. Um último ponto que vale a pena ser abordado, embora as partes não lhe tenham dedicado uma particular atenção, diz respeito à possibilidade de considerar contrário ao direito da União o facto de a administração irlandesa, no momento de ponderar os vários critérios de adjudicação, ter atribuído um peso nulo (0%) a um deles. Refiro‑me, como é evidente, ao critério da «apresentação de documentação completa».
65. Na minha opinião, indicar no anúncio um critério de adjudicação e atribuir ao mesmo, depois do termo do prazo para apresentação de propostas, um peso de 0%, equivale, para todos os efeitos, a uma alteração dos critérios. O resultado prático, de facto, é igual ao que se obteria eliminando o critério da lista: o critério indicado no anúncio não é utilizado para adjudicar o contrato. Noutros termos, as autoridades irlandesas, provavelmente, violaram o direito da União atribuindo um peso nulo ao critério da documentação completa.
66. O Tribunal não pode, contudo, neste caso, proferir uma decisão de condenação por este incumprimento.
67. Em primeiro lugar, poderia colocar a questão de saber, como observei antes, se o «critério de adjudicação» da apresentação de documentação completa não deve ser considerado, na realidade, como uma simples condição para participação no concurso. Por definição, a documentação ou está completa, isto é, preenche os requisitos impostos pelo concurso, ou não preenche. É difícil imaginar uma situação intermédia. No entanto, é um facto que, mesmo que se devesse considerar que a apresentação de documentação completa não é um critério de adjudicação, no concurso esta foi apresentada como tal, e poderiam, portanto, colocar‑se, de qualquer forma, dúvidas sobre a compatibilidade com os princípios do Tratado.
68. Em segundo lugar, todavia, é um facto que esse incumprimento não foi alegado pela Comissão. Não é, efectivamente, indicado de modo explícito, nem pode ser considerado, de qualquer modo, implícito no pedido, que se limita a criticar, como se viu, a fixação do peso dos critérios depois do termo do prazo para apresentar propostas e a alteração desse peso efectuada depois da apreciação das propostas realizada individualmente pelos membros da comissão do concurso. Do mesmo modo, o Governo irlandês não teve oportunidade de se pronunciar sobre tal aspecto.
V - Conclusões
69. Concluindo a minha apreciação, sugiro, portanto, ao Tribunal de Justiça que julgue procedente a segunda das duas críticas apresentadas pela Comissão. No que diz respeito às despesas, dado que a Irlanda ficou apenas parcialmente vencida, proponho que seja condenada, por força do artigo 69.°, n.° 3, do Regulamento de Processo do Tribunal, a pagar metade das despesas efectuadas pela Comissão.
70. Com base nas considerações desenvolvidas, proponho ao Tribunal que delibere do seguinte modo:
─ «alterando o peso atribuído aos critérios de adjudicação de um contrato depois de uma primeira apreciação das propostas apresentadas, a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos princípios da igualdade de tratamento, da não discriminação e da transparência;
─ a acção é julgada improcedente quanto ao restante;
─ a Irlanda é condenada em metade das despesas;
─ a Comissão suporta metade das suas despesas».
_______________________________________________________________
(1) Língua original: italiano.
(2) Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO L 134, p. 114).
(3) JO de 16 de Maio de 2006, S 92. O número de referência do anúncio é 2006/S 92‑098663.
(4) O anúncio previa a subdivisão do contrato em vários lotes.
(5) V., por exemplo, acórdãos de 18 de Junho de 2002, HI (C‑92/00, Colect., p. I‑5553, n.° 43), e de 13 Novembro 2007, Comissão/Irlanda (C‑507/03, Colect., p. I‑9777, n.° 27).
(6) A necessidade de um interesse transfronteiriço não é sempre afirmada claramente pela jurisprudência do Tribunal, que contém por vezes afirmações que parecem implicar uma aplicação incondicional dos princípios que decorrem do Tratado: cf., por exemplo, acórdão de 7 de Dezembro de 2000, Telaustria e Telefonadress (C‑324/98, Colect., p. I‑10745, n.° 60), e despacho de 3 de Dezembro de 2001, Vestergaard (C‑59/00, Colect., p. I‑9505, n.° 20). Noutras decisões, todavia, o requisito é explicitamente indicado: cf., por exemplo, em matéria de concessões, acórdãos de 21 de Julho de 2005, Coname (C‑231/03, Colect., p. I‑7287, n.° 20), e de 13 Abril de 2010, Wall (C‑91/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 34). Especificamente sobre serviços de interesse não prioritário (quer dizer, os referidos no anexo II B da Directiva 2004/18/CE), v. acórdão Comissão/Irlanda, já referido na nota 5 (n.° 29). A própria Comissão reconheceu a necessidade de um interesse transfronteiriço na sua Comunicação interpretativa sobre o direito comunitário aplicável às adjudicações de contratos não abrangidos, ou apenas parcialmente, pelas directivas comunitárias relativas aos contratos públicos (JO de 1 de Agosto de 2006, C 179, p. 2, ponto 1.3).
(7) A jurisprudência a este propósito é assente: v., por exemplo, acórdão de 13 Outubro de 2005, Parking Brixen (C‑458/03, Colect., p. I‑8585, n.os 47 a 49).
(8) A Comissão, aliás, apresentou argumentação bastante extensa para demonstrar a existência de um interesse transfronteiriço do contrato em apreço: isto, evicentemente, com o fim de respeitar o princípio que lhe impõe o ónus da prova neste aspecto. Cf. acórdão Comissão/Irlanda, já referido na nota 5 (n.° 32).
(9) A particular insistência do Governo irlandês no facto de a atribuição do peso aos critérios ter sido alterada antes de a comissão do concurso iniciar a apreciação das propostas não põe em dúvida todavia o facto de os membros de tal comissão terem, entretanto, já efectuado uma primeira apreciação das propostas a título individual. Esta circunstância está de facto demonstrada de modo claro pela documentação anexada pela Comissão à sua petição.
(10) V. acórdão Coname, já referido na nota 6 (n.° 17).
(11) Acórdão de 24 de Novembro de 2005, ATI EAC e o. (C‑331/04, Colect., p. I‑10109, n.° 32).
(12) Acórdãos de 25 de Abril de 1996, Comissão/Bélgica (C‑87/94, Colect., p. I‑2043, n.° 88), e 12 de Dezembro de 2002, Universale‑Bau e o. (C‑470/99, Colect., p. I‑11617, n.° 98). É interessante notar que, nas directivas aplicáveis nos processos decididos pelos acórdãos ora referidos, se pedia à administração para indicar previamente o peso dos critérios de adjudicação apenas «se possível», enumerando‑os por ordem da importância que lhes foi atribuída (cf. o artigo 30.°, n.° 2, da Directiva 93/37/CEE e o artigo 27.°, n.° 2, da Directiva 90/531/CEE).
(13) Acórdão de 18 de Outubro de 2001, SIAC Construction (C‑19/00, Colect., p. I‑7725, n.° 43).
(14) Acórdão de 4 de Dezembro de 2003, EVN e Wienstrom (C‑448/01, Colect., p. I‑14527, n.° 93).
(15) V., por analogia, acórdão de 22 de Junho de 1993, Comissão/Dinamarca (C‑243/89, Colect., p. I‑3353, n.° 33).
(16) V., por exemplo, acórdão Telaustria e Telefonadress, já referido na nota 6 (n.° 63), e Parking Brixen, já referido na nota 7 (n.° 50).
(17) V., por exemplo, acórdão Telaustria e Telefonadress, já referido na nota 6 (n.° 62); v. também, por analogia, em matéria de concessões de serviços, acórdãos de 13 de Novembro de 2008, Coditel Brabant (C‑324/07, Colect., p. I‑8457, n.° 25), e de 3 Junho de 2010, Sporting Exchange (C‑203/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 41 e jurisprudência aí citada).
(18) V. a este propósito também, n.os 64 e seguintes infra.
(19) V. n.° 43 supra.
(20) V., por exemplo, acórdão de 2 de Junho de 2005, Comissão/Grécia (C‑394/02, Colect., p. I‑4713, n.os 14 a 16 e jurisprudência aí citada).