Processo C-203/08
Sporting Exchange Ltd, que age sob a denominação de «Betfair»
contra
Minister van Justitie
(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Raad van State)
«Artigo 49.° CE - Restrições à livre prestação de serviços - Jogos de fortuna ou azar - Exploração de jogos de fortuna ou azar através da Internet - Legislação que reserva uma autorização a um operador único - Renovação da autorização sem abertura de concurso - Princípio da igualdade de tratamento e dever de transparência - Aplicação no domínio dos jogos de fortuna ou azar»
Sumário do acórdão:
1. O artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro que sujeita a organização e a promoção dos jogos de fortuna ou azar a um regime de exclusividade a favor de um único operador e que proíbe que qualquer outro operador, inclusivamente um operador estabelecido noutro Estado‑Membro, proponha, através da Internet, no território do primeiro Estado‑Membro, serviços abrangidos pelo referido regime.
Não sendo o sector dos jogos de fortuna ou azar oferecidos através da Internet objecto de harmonização na União Europeia, um Estado‑Membro pode entender que o simples facto de um operador oferecer legalmente serviços nesse sector através da Internet noutro Estado‑Membro, onde está estabelecido e já está, em princípio, sujeito aos requisitos legais e a controlos por parte das autoridades competentes deste último Estado, não pode ser considerado uma garantia suficiente de protecção dos consumidores nacionais contra os riscos de fraude e de criminalidade, à luz das prováveis dificuldades encontradas, nesse contexto, pelas autoridades do Estado‑Membro de estabelecimento para avaliar as qualidades e a integridade profissionais dos operadores. Além disso, devido à falta de contacto directo entre o consumidor e o operador, os jogos de fortuna ou azar acessíveis na Internet comportam riscos de natureza diferente e de uma importância acrescida em relação aos mercados tradicionais desses jogos, no que se refere a eventuais fraudes cometidas pelos operadores contra os consumidores. A referida restrição pode assim, à luz das particularidades relacionadas com a oferta de jogos de fortuna ou azar na Internet, ser considerada justificada pelo objectivo de combate à fraude e à criminalidade.
(cf. n.os 33-34, 36-37, disp. 1)
2. O artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que o princípio da igualdade de tratamento e o dever de transparência dele resultante são aplicáveis aos procedimentos de concessão e de renovação de licenças a favor de um operador único no domínio dos jogos de fortuna ou azar, desde que não se trate de um operador público cuja gestão esteja submetida à fiscalização directa do Estado ou de um operador privado cujas actividades possam ser objecto de controlo rigoroso por parte dos poderes públicos.
No estado actual do direito da União, os contratos de concessão de serviços não são regulados por nenhuma das directivas pelas quais o legislador da União regulamentou o domínio dos contratos públicos. No entanto, para que um regime de autorização administrativa prévia seja justificado, como o que proíbe organizar ou promover jogos de fortuna ou azar sem essa autorização e que concede apenas uma licença para cada um dos jogos autorizados, mesmo que derrogue uma liberdade fundamental, deve basear‑se em critérios objectivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente, para enquadrar o exercício do poder de apreciação das autoridades por forma a que este não seja utilizado de forma arbitrária. Por outro lado, quem for sujeito a uma medida restritiva baseada numa derrogação como essa, deve dispor de meios processuais de natureza jurisdicional.
(cf. n.os 39, 43, 50, 62, disp. 2)
Texto integral:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)
3 de Junho de 2010 (*)
No processo C‑203/08,
que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Raad van State (Países Baixos), por decisão de 14 de Maio de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 16 de Maio de 2008, no processo
Sporting Exchange Ltd, que age sob a denominação de «Betfair»,
contra
Minister van Justitie,
sendo intervenientes:
Stichting de Nationale Sporttotalisator,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),
composto por: J. N. Cunha Rodrigues (relator), presidente de secção, P. Lindh, A. Rosas, U. Lõhmus e A. Arabadjiev, juízes,
advogado‑geral: Y. Bot,
secretário: R. Şereş, administradora,
vistos os autos e após a audiência de 12 de Novembro de 2009,
vistas as observações apresentadas:
─ em representação da Sporting Exchange Ltd, que age sob a denominação de «Betfair», por I. Scholten‑Verheijen, O. Brouwer, A. Stoffer e J. Franssen, advocaten,
─ em representação da Stichting de Nationale Sporttotalisator, por W. Geursen, E. Pijnacker Hordijk e M. van Wissen, advocaten,
─ em representação do Governo neerlandês, por C. Wissels, M. de Grave e Y. de Vries, na qualidade de agentes,
─ em representação do Governo belga, por A. Hubert e L. Van den Broeck, na qualidade de agentes, assistidas por P. Vlaemminck, advocaat,
─ em representação do Governo dinamarquês, por J. Bering Liisberg e V. Pasternak Jørgensen, na qualidade de agentes,
─ em representação do Governo alemão, por M. Lumma, na qualidade de agente,
─ em representação do Governo grego, por M. Tassopoulou, Z. Chatzipavlou e A. Samoni‑Rantou, na qualidade de agentes,
─ em representação do Governo espanhol, por F. Díez Moreno, na qualidade de agente,
─ em representação do Governo austríaco, por C. Pesendorfer, na qualidade de agente,
─ em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, P. Mateus Calado e A. Barros, na qualidade de agentes,
─ em representação do Governo finlandês, por A. Guimaraes‑Purokoski e J. Heliskoski, na qualidade de agentes,
─ em representação do Governo norueguês, por P. Wennerås e K. Moen, na qualidade de agentes,
─ em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por E. Traversa, A. Nijenhuis e S. Noë, na qualidade de agentes,
ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 17 de Dezembro de 2009,
profere o presente
Acórdão
1. O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 49.° CE.
2. Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a sociedade Sporting Exchange Ltd, que age sob a denominação de «Betfair», estabelecida no Reino Unido (a seguir «Betfair»), ao Minister van Justitie (Ministro da Justiça, a seguir «Minister») relativamente ao indeferimento, por este último, por um lado, dos pedidos apresentados por aquela sociedade para obtenção de uma licença para organizar jogos de fortuna ou azar nos Países Baixos e, por outro, das reclamações que apresentou contra as licenças concedidas a dois outros operadores.
Quadro jurídico nacional
3. O artigo 1.° da Lei do jogo (Wet op de kansspelen, a seguir «Wok») prevê:
«É proibido, sem prejuízo do disposto no título Va desta lei:
a. proporcionar a possibilidade de concorrer a prémios se a nomeação dos vencedores for feita por meio de uma determinação aleatória na qual os participantes não possam, em geral, exercer qualquer influência significativa, salvo se for concedida licença nos termos da presente lei;
b. promover a participação quer na possibilidade prevista na alínea a), proporcionada sem licença nos termos da presente lei, quer numa possibilidade semelhante, proporcionada fora do território europeu do Reino dos Países Baixos, ou deter, com esse objectivo, documentos destinados a divulgação ou distribuição; [...]»
4. O artigo 16.°, n.° 1, da Wok tem a seguinte redacção:
«Tendo em vista os interesses de instituições que se dedicam a actividades de utilidade pública, em especial no domínio do desporto e da educação física, da cultura, do bem‑estar social e da saúde, o Ministro da Justiça e o Ministro do Bem‑Estar, da Saúde Pública e da Cultura podem conceder uma licença para a organização de apostas desportivas, pelo período que os mesmos determinarem, a uma pessoa colectiva dotada de plena capacidade jurídica.»
5. O artigo 23.° da Wok enuncia:
«1. A concessão de uma licença para a organização de um sistema de apostas mútuas só pode ser efectuada em conformidade com o disposto no presente título.
2. Entende‑se por ‘sistema de apostas mútuas' a possibilidade de apostar no resultado das corridas de cavalo a trote e a galope, sendo o total dos montantes apostados, sem prejuízo das deduções permitidas nos termos da lei, distribuído por aqueles que apostaram no vencedor ou num dos vencedores.»
6. Nos termos do artigo 24.° da Wok, o Ministro da Agricultura e das Pescas e o Ministro da Justiça podem conceder uma licença para a organização de um sistema de apostas mútuas, pelo período que os mesmos determinarem, a uma pessoa colectiva dotada de plena capacidade jurídica.
7. O artigo 25.° da Wok prevê:
«1. As licenças para organizar apostas mútuas concedidas pelos Ministros referidos no artigo 24.° ficarão dependentes de determinadas condições.
2. Essas condições referem‑se, nomeadamente:
a. ao número de corridas de cavalo a trote e a galope;
b. ao número total de montantes apostados por pessoa;
c. à percentagem retida antes de efectuada a repartição entre os vencedores das apostas e o destino a dar a essa percentagem;
d. à fiscalização da aplicação que deve ser exercida pelas autoridades;
e. ao dever de evitar e de prevenir, na medida do possível, as apostas não autorizadas ou os intermediários em matéria de apostas nos locais em que decorram as corridas de cavalo a trote e a galope.
3. As condições podem ser alteradas e completadas.»
8. Nos termos do artigo 26.° da Wok:
«A licença concedida em conformidade com o disposto no artigo 24.° pode ser retirada antes da sua caducidade pelos Ministros mencionados no referido artigo caso sejam infringidas as condições fixadas no artigo 25.°»
9. Segundo o artigo 27.° da Wok, é proibido oferecer ou fornecer ao público um serviço de intermediário na actividade de corretor de apostas junto de um operador de apostas mútuas.
Litígio no processo principal e questões prejudiciais
10. A legislação neerlandesa relativa aos jogos de fortuna ou azar baseia‑se num sistema de autorizações exclusivas, segundo o qual, por um lado, é proibido organizar ou promover jogos de fortuna ou azar, excepto nos casos em que tenha sido concedida uma autorização administrativa para esse efeito e, por outro, as autoridades nacionais concedem apenas uma licença para cada um dos jogos de fortuna ou azar autorizados.
11. Resulta, além disso, dos autos do litígio no processo principal, tal como enviados ao Tribunal de Justiça pelo órgão jurisdicional de reenvio, que não existe nenhuma possibilidade de oferecer de forma interactiva jogos de fortuna ou azar através da Internet nos Países Baixos.
12. A Stichting de Nationale Sporttotalisator (a seguir «De Lotto»), que é uma fundação de direito privado sem fins lucrativos, é titular, desde 1961, da licença para a organização de apostas desportivas, do loto e da lotaria. A licença para a organização de apostas mútuas sobre os resultados de corridas de cavalos foi concedida à sociedade de responsabilidade limitada Scientific Games Racing BV (a seguir «SGR»), que é uma filial da sociedade Scientific Games Corporation Inc., estabelecida nos Estados Unidos.
13. Resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que o objecto da De Lotto, segundo os seus estatutos, consiste na recolha de fundos através da organização de jogos de fortuna ou azar e na repartição desses fundos por instituições de interesse público, especialmente no domínio do desporto, da educação física, do bem‑estar geral, da saúde pública e da cultura. A direcção da De Lotto é assumida por um colégio de comissários composto por cinco membros, cujo presidente é nomeado pelo Minister. Os outros membros são designados pela Stichting Aanwending Loterijgelden Nederland (Fundação para a utilização das receitas do loto) e pela Nederlands Olympisch Comité/Nederlandes Sport Federatie (Comité Olímpico Neerlandês/Federação do Desporto Neerlandesa).
14. A Betfair é uma empresa activa no sector dos jogos de fortuna ou azar e oferece os seus serviços exclusivamente através da Internet e do telefone. A partir do Reino Unido, disponibiliza aos destinatários de serviços uma plataforma para as apostas sobre os acontecimentos desportivos e as corridas de cavalos, conhecida sob o nome de «betting exchange», com base em licenças britânicas e maltesas. A Betfair não dispõe de nenhum estabelecimento ou ponto de venda nos Países Baixos.
15. Pretendendo oferecer os seus serviços de forma activa no mercado neerlandês, a Betfair solicitou ao Minister que se pronunciasse sobre a questão de saber se necessitava de uma licença para o exercício dessas actividades. Solicitou igualmente a concessão de uma autorização para a organização, através da Internet ou por outros meios, de apostas desportivas e de apostas mútuas sobre os resultados de corridas de cavalos. Por decisão de 29 de Abril de 2004, o Minister indeferiu estes pedidos.
16. A reclamação apresentada contra esta decisão foi indeferida pelo Minister em 9 de Agosto de 2004. Este último considerou, nomeadamente, que a Wok contém um regime de licenças fechado que não prevê a possibilidade de conceder licenças para permitir a participação em jogos de fortuna ou azar através da Internet. Não podendo a Betfair obter uma licença nos termos da referida lei para as suas actividades exercidas através da Internet, é‑lhe proibido oferecer estes serviços a destinatários estabelecidos nos Países Baixos.
17. A Betfair apresentou igualmente duas reclamações contra as decisões do Minister de 10 de Dezembro de 2004 e de 21 de Junho de 2005 que renovaram as licenças concedidas, respectivamente, à De Lotto e à SGR.
18. Estas reclamações foram indeferidas por decisões do Minister, respectivamente, de 17 de Março e de 4 de Novembro de 2005.
19. Por decisão de 8 de Dezembro de 2006, o Rechtbank 's‑Gravenhage (Tribunal de Primeira Instância de Haia) julgou improcedentes os recursos interpostos pela Betfair das decisões de indeferimento acima referidas. Esta última interpôs em seguida recurso desta decisão para o Raad van State.
20. No seu recurso, a Betfair alegou, no essencial, que as autoridades neerlandesas estavam obrigadas, por um lado, a reconhecer a licença que lhe foi concedida no Reino Unido e, por outro, a respeitar, baseando‑se no acórdão de 13 de Setembro de 2007, Comissão/Itália (C‑260/04, Colect., p. I‑7083), o princípio da transparência quando da concessão de uma licença para a oferta de jogos de fortuna ou azar.
21. Considerando que a interpretação do direito da União é necessária para se poder pronunciar sobre o litígio que lhe foi submetido, o Raad van State decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) O artigo 49.° [...] CE deve ser interpretado no sentido de que da sua aplicação resulta que a autoridade competente de um Estado‑Membro não pode, com base no regime de licenças exclusivo que vigora nesse Estado‑Membro em relação à oferta de serviços relativos a jogos de fortuna ou azar, proibir que um prestador de serviços ao qual já foi concedida uma licença noutro Estado‑Membro para a prestação de serviços através da Internet também ofereça estes serviços através da Internet no primeiro Estado‑Membro?
2) A interpretação que o Tribunal de Justiça fez do artigo 49.° [...] CE e, em especial, do princípio da igualdade e do dever de transparência dele resultante em alguns processos que tinham por objecto concessões é aplicável ao processo relativo à concessão de uma licença para a oferta de serviços relativos a jogos de fortuna ou azar num regime de licença única fixado por lei?
3) a) Num regime de licença única fixado por lei, a prorrogação da licença concedida ao actual titular, sem que os potenciais interessados tenham a oportunidade de concorrer à obtenção da licença, constitui um meio adequado e proporcional para a realização das razões imperiosas de interesse geral que o Tribunal de Justiça aceitou como justificações da limitação da livre circulação na oferta de serviços relativos a jogos de fortuna ou azar? Em caso afirmativo, em que condições?
b) Para a resposta à terceira questão, alínea a), é relevante a resposta afirmativa ou negativa à segunda questão?»
Quanto às questões prejudiciais
Quanto à primeira questão
22. Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, que sujeita a organização e a promoção dos jogos de fortuna ou azar a um regime de exclusividade a favor de um único operador e que proíbe que qualquer outro operador, inclusivamente um operador estabelecido noutro Estado‑Membro, proponha, através da Internet, no território do primeiro Estado‑Membro, serviços abrangidos pelo referido regime.
23. O artigo 49.° CE exige a eliminação de qualquer restrição à livre prestação de serviços, ainda que indistintamente aplicada aos prestadores nacionais e aos de outros Estados‑Membros, quando seja susceptível de impedir, entravar ou tornar menos atractivas as actividades do prestador estabelecido noutro Estado‑Membro, onde preste legalmente serviços análogos. A liberdade de prestação de serviços beneficia tanto o prestador como o destinatário dos serviços (acórdão de 8 de Setembro de 2009, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, C‑42/07, Colect., p. I‑0000, n.° 51 e jurisprudência referida).
24. É ponto assente que uma legislação de um Estado‑Membro, como a que está em causa no processo principal, constitui uma restrição à livre prestação de serviços garantida pelo artigo 49.° CE (v., neste sentido, acórdãos Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.° 52, e, de hoje, Ladbrokes Betting & Gaming e Ladbrokes International, C‑258/08, Colect., p. I‑0000, n.° 16).
25. Importa contudo verificar se tal restrição pode ser admitida a título de medidas derrogatórias expressamente previstas nos artigos 45.° CE e 46.° CE, aplicáveis nesta matéria por força do artigo 55.° CE, ou justificada, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, por razões imperiosas de interesse geral (v., neste sentido, acórdão Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.° 55).
26. O artigo 46.°, n.° 1, CE admite restrições justificadas por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública. A jurisprudência do Tribunal de Justiça identificou um certo número de razões imperiosas de interesse geral susceptíveis de justificar também as referidas restrições, como nomeadamente os objectivos de protecção dos consumidores, de prevenção da fraude e de incitação dos cidadãos a uma despesa excessiva ligada ao jogo, bem como de prevenção das perturbações da ordem social em geral (acórdão Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.° 56).
27. Neste contexto, as particularidades de ordem moral, religiosa ou cultural, bem como as consequências moral e financeiramente prejudiciais para o indivíduo e para a sociedade que envolvem os jogos e as apostas, podem ser susceptíveis de justificar a existência na esfera jurídica das autoridades nacionais de um poder de apreciação bastante para determinar as exigências que a protecção do consumidor e da ordem social implica (acórdãos de 6 de Novembro de 2003, Gambelli e o., C‑243/01, Colect., p. I‑13031, n.° 63, e de 6 de Março de 2007, Placanica e o., C‑338/04, C‑359/04 e C‑360/04, Colect., p. I‑1891, n.° 47).
28. Os Estados‑Membros têm a faculdade de fixar, em função da sua própria escala de valores, os objectivos da sua política em matéria de jogos de fortuna ou azar e, eventualmente, de definir com precisão o nível de protecção pretendido. No entanto, as restrições que impõem devem preencher as condições que resultam da jurisprudência do Tribunal de Justiça, nomeadamente a respeito da sua proporcionalidade (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Placanica e o., n.° 48, e Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, n.° 59).
29. Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais verificar se as legislações dos Estados‑Membros prosseguem verdadeiramente os objectivos susceptíveis de justificar estas últimas e se as restrições que impõem não são desproporcionais em relação a esses objectivos (acórdãos, já referidos, Gambelli e o., n.° 75, e Placanica e o., n.° 58).
30. Referindo‑se concretamente aos acórdãos, já referidos, Gambelli e o. e Placanica e o., o órgão jurisdicional de reenvio indicou que os objectivos destinados a garantir a protecção do consumidor assim como o combate à criminalidade e ao vício do jogo, nos quais se baseia o sistema de autorizações exclusivas previsto na Wok, podem ser considerados razões imperiosas de interesse geral na acepção da jurisprudência do Tribunal de Justiça.
31. O órgão jurisdicional nacional considera também que as restrições decorrentes do referido sistema não são desproporcionadas nem aplicadas de forma discriminatória. No que se refere especificamente à proporcionalidade, sublinha que o facto de admitir apenas um titular de uma licença não só simplifica o controlo deste último, pelo que a fiscalização do cumprimento das normas associadas à licença pode ser mais eficaz, como também impede o surgimento de concorrência acrescida, que possa eventualmente conduzir ao aumento do vício do jogo, entre vários titulares de licenças. O mesmo órgão jurisdicional acrescenta que a proibição a todos aqueles que não sejam o titular da licença de proporem jogos de fortuna ou azar se aplica indistintamente às empresas estabelecidas nos Países Baixos e às estabelecidas noutros Estados‑Membros.
32. A dúvida do órgão jurisdicional de reenvio decorre do facto de, no litígio no processo principal, a Betfair alegar que não necessita de ser titular de uma licença concedida pelas autoridades neerlandesas para oferecer os seus serviços de apostas desportivas através da Internet aos apostadores que residam nos Países Baixos. Com efeito, esse Estado‑Membro está obrigado a reconhecer as licenças que foram concedidas a esta sociedade por outros Estados‑Membros.
33. A este respeito, importa referir que o sector dos jogos de fortuna ou azar oferecidos através da Internet não é objecto de harmonização na União Europeia. Por conseguinte, um Estado‑Membro pode entender que o simples facto de um operador, como a Betfair, oferecer legalmente serviços nesse sector através da Internet noutro Estado‑Membro, onde está estabelecido e já está, em princípio, sujeito aos requisitos legais e a controlos por parte das autoridades competentes deste último Estado, não pode ser considerado uma garantia suficiente de protecção dos consumidores nacionais contra os riscos de fraude e de criminalidade, à luz das prováveis dificuldades encontradas, nesse contexto, pelas autoridades do Estado‑Membro de estabelecimento para avaliar as qualidades e a integridade profissionais dos operadores (v., neste sentido, acórdão Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.° 69).
34. Além disso, devido à falta de contacto directo entre o consumidor e o operador, os jogos de fortuna ou azar acessíveis através da Internet comportam riscos de natureza diferente e de uma importância acrescida em relação aos mercados tradicionais desses jogos, no que respeita a eventuais fraudes cometidas pelos operadores contra os consumidores (acórdão Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.° 70).
35. Não se pode considerar que o facto de um operador que oferece jogos de fortuna ou azar através da Internet não praticar uma política activa de vendas no Estado‑Membro em causa, nomeadamente por não publicitar os seus serviços nesse Estado, se opõe às considerações que foram feitas nos dois números anteriores. Estas basearam‑se apenas nos efeitos da mera acessibilidade dos jogos de fortuna ou azar através da Internet e não nas consequências eventualmente divergentes da oferta activa ou passiva das prestações desse operador.
36. Resulta do exposto que a restrição em causa no processo principal pode, à luz das particularidades relacionadas com a oferta de jogos de fortuna ou azar através da Internet, ser considerada justificada pelo objectivo de combate à fraude e à criminalidade (acórdão Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.° 72).
37. Há assim que responder à primeira questão que o artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro, como a em causa no processo principal, que sujeita a organização e a promoção dos jogos de fortuna ou azar a um regime de exclusividade a favor de um único operador e que proíbe que qualquer outro operador, inclusivamente um operador estabelecido noutro Estado‑Membro, proponha, através da Internet, no território do primeiro Estado‑Membro, serviços abrangidos pelo referido regime.
Quanto à segunda e terceira questões
38. Através da segunda e terceira questões, que há que analisar em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, por um lado, se a jurisprudência desenvolvida pelo Tribunal de Justiça a propósito da interpretação do artigo 49.° CE assim como do princípio da igualdade de tratamento e do dever de transparência dele resultante, no domínio das concessões de serviços, é aplicável a um procedimento de concessão de uma licença a um operador único no domínio dos jogos de fortuna ou azar. Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a renovação dessa licença, sem proceder à abertura de concurso público, pode constituir um meio adequado e proporcionado para realizar objectivos baseados em razões imperiosas de interesse geral.
39. No estado actual do direito da União, os contratos de concessão de serviços não são regulados por nenhuma das directivas pelas quais o legislador da União regulamentou o domínio dos contratos públicos. Todavia, as autoridades públicas que celebram esses contratos estão obrigadas a respeitar as regras fundamentais do Tratado CE em geral, nomeadamente o artigo 49.° CE e, em especial, os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação em razão da nacionalidade, bem como o dever de transparência deles decorrente (v., neste sentido, acórdãos de 7 de Dezembro de 2000, Telaustria e Telefonadress, C‑324/98, Colect., p. I‑10745, n.os 60 a 62; de 10 de Setembro de 2009, Eurawasser, C‑206/08, Colect., p. I‑0000, n.° 44; e de 13 de Abril de 2010, Wall, C‑91/08, Colect., p. I‑0000, n.° 33).
40. Este dever de transparência aplica‑se no caso de a concessão de serviços em causa ser susceptível de interessar uma empresa situada num Estado‑Membro diferente daquele em que a concessão é adjudicada (v., neste sentido, acórdãos de 21 de Julho de 2005, Coname, C‑231/03, Colect., p. I‑7287, n.° 17, e Wall, já referido, n.° 34).
41. Sem implicar necessariamente uma obrigação de proceder à abertura de um concurso público, o referido dever de transparência impõe à autoridade concedente que garanta, a favor de todos os potenciais concessionários, um grau de publicidade adequado que permita que as concessões de serviços sejam abertas à concorrência e sujeitas à fiscalização da imparcialidade dos procedimentos de adjudicação (v., neste sentido, acórdãos de 13 de Novembro de 2008, Coditel Brabant, C‑324/07, Colect., p. I‑8457, n.° 25, e Wall, já referido, n.° 36).
42. Resulta tanto da decisão de reenvio como da redacção da segunda questão submetida pelo órgão jurisdicional nacional que a intervenção das autoridades públicas neerlandesas para habilitarem determinados operadores económicos a fornecerem nos Países Baixos prestações no domínio dos jogos de fortuna ou azar é considerada, por aquele órgão jurisdicional, uma concessão de uma licença única.
43. Como indicado no n.° 10 do presente acórdão, a Wok baseia‑se num sistema de licenças exclusivas, segundo o qual, por um lado, é proibido organizar ou promover jogos de fortuna ou azar, excepto nos casos em que tenha sido concedida uma autorização administrativa para esse efeito, e, por outro, as autoridades nacionais concedem apenas uma licença para cada um dos jogos de fortuna ou azar autorizados.
44. A licença única constitui uma intervenção das autoridades públicas que se destina a regulamentar o exercício de uma actividade económica, no presente caso, a organização de jogos de fortuna ou azar.
45. Constam da decisão de concessão da licença as condições impostas pelas mencionadas autoridades, que se referem, nomeadamente, ao número máximo anual de apostas desportivas autorizadas, aos montantes destas, à distribuição das receitas líquidas a instituições de interesse público e aos rendimentos próprios do operador em causa, no sentido de que este último só pode conservar o montante das despesas efectuadas sem obter qualquer lucro. Por outro lado, este operador está autorizado a constituir, anualmente, uma reserva correspondente, no máximo, a 2,5% das receitas obtidas durante o ano civil anterior, para assegurar a continuidade da sua actividade.
46. O facto de a concessão de uma licença única não equivaler a um contrato de concessão de serviços não pode, por si só, justificar que as exigências resultantes do artigo 49.° CE, nomeadamente o princípio da igualdade de tratamento e o dever de transparência, sejam violadas quando da concessão de uma autorização administrativa como a que está em causa no processo principal.
47. Com efeito, como referiu o advogado‑geral Y. Bot nos n.os 154 e 155 das suas conclusões, o dever de transparência surge como condição prévia obrigatória do direito de um Estado‑Membro atribuir a um operador o direito exclusivo de exercer uma actividade económica, independentemente do modo de selecção desse operador. Esse dever tem também de encontrar aplicação no quadro de um regime de licença concedida a um operador único pelas autoridades de um Estado‑Membro no exercício dos poderes de polícia, uma vez que os efeitos dessa licença relativamente às empresas estabelecidas noutros Estados‑Membros e que estariam eventualmente interessadas no exercício dessa actividade são os mesmos que os de um contrato de concessão de serviços.
48. É certo que decorre da resposta à primeira questão que os Estados‑Membros dispõem de um poder de apreciação suficiente para definir o nível de protecção pretendido em matéria de jogos de fortuna ou azar e, por conseguinte, podem optar, como no processo principal, por um regime de licenças a favor de um operador único.
49. No entanto, esse regime não pode legitimar um comportamento discricionário por parte das autoridades nacionais, susceptível de privar do seu efeito útil as disposições do direito da União, nomeadamente as relativas a uma liberdade fundamental como a livre prestação de serviços.
50. Com efeito, segundo jurisprudência constante, para que um regime de autorização administrativa prévia seja justificado, mesmo que derrogue uma liberdade fundamental, deve basear‑se em critérios objectivos, não discriminatórios e conhecidos antecipadamente, para enquadrar o exercício do poder de apreciação das autoridades por forma a que este não seja utilizado de forma arbitrária (acórdãos de 17 de Julho de 2008, Comissão/França, C‑389/05, Colect., p. I‑5397, n.° 94, e de 10 de Março de 2009, Hartlauer, C‑169/07, Colect., p. I‑1721, n.° 64). Além disso, qualquer pessoa lesada por uma medida restritiva baseada nessa derrogação deve poder dispor de uma via de recurso de natureza jurisdicional (v., neste sentido, acórdão de 20 de Fevereiro de 2001, Analir e o., C‑205/99, Colect., p. I‑1271, n.° 38).
51. O respeito pelo princípio da igualdade de tratamento e pelo dever de transparência dele resultante tem necessariamente de implicar que os critérios objectivos que permitem enquadrar o poder de apreciação das autoridades competentes dos Estados‑Membros sejam sujeitos a publicidade adequada.
52. Relativamente ao procedimento de prorrogação das autorizações exclusivas concedidas ao abrigo da Wok, o Governo neerlandês precisou, nas suas observações escritas, que a concessão das licenças é sempre temporária, sendo, na maioria dos casos, concedidas por períodos de cinco anos. Esta actuação prossegue um objectivo de continuidade, com datas de referência determinadas que permitem decidir se se justifica que as condições da licença sejam adaptadas.
53. É facto assente que, através das decisões de 10 de Dezembro de 2004 e de 21 de Junho de 2005, o Minister renovou as licenças concedidas, respectivamente, à De Lotto, por um período de cinco anos, e à SGR, por um período de três anos, à margem de qualquer procedimento de concurso.
54. A este respeito, não há que distinguir consoante os efeitos restritivos de uma licença única resultem da concessão desta em violação das exigências enunciadas no n.° 50 do presente acórdão ou da sua renovação ao abrigo das mesmas condições.
55. Um procedimento de renovação de licença, como o que está em causa no processo principal, que não preenche as referidas condições, constitui, em princípio, um obstáculo a que outros operadores possam manifestar o seu interesse no exercício da actividade em causa impedindo, desse modo, que estes últimos beneficiem dos direitos que são conferidos pelo direito da União, nomeadamente do direito à livre prestação de serviços consagrado no artigo 49.° CE.
56. O Governo neerlandês sublinha que o órgão jurisdicional de reenvio constatou que as restrições resultantes do sistema de concessão da licença atribuída a um operador único se justificam por razões imperiosas de interesse geral e que são adequadas e proporcionadas.
57. Contudo, há que precisar que as apreciações formuladas pelo órgão jurisdicional de reenvio a que o Governo neerlandês se refere dizem respeito, regra geral, a um sistema de autorização exclusiva como o previsto na Wok e não, em especial, ao procedimento de renovação da licença atribuída ao operador que beneficia do direito exclusivo de organizar e promover jogos de fortuna ou azar.
58. Como salientou o advogado‑geral no n.° 161 das suas conclusões, importa distinguir os efeitos da abertura do mercado dos jogos de fortuna ou azar à concorrência, cujo carácter prejudicial é susceptível de justificar uma restrição à actividade dos operadores económicos, dos efeitos decorrentes da abertura de um concurso para adjudicação do contrato em causa. O carácter prejudicial da instauração da concorrência no mercado, ou seja, entre vários operadores que seriam autorizados a explorar o mesmo jogo de fortuna ou azar, deve‑se ao facto de estes últimos serem levados a rivalizar em inventividade para tornar a sua oferta mais atractiva e, de certo modo, aumentar as despesas dos consumidores ligadas ao jogo assim como os seus riscos de dependência. Pelo contrário, essas consequências não são de recear na fase da concessão da licença.
59. Seja como for, as restrições à liberdade fundamental consagrada no artigo 49.° CE que resultam especificamente dos procedimentos de concessão e de renovação de uma licença a favor de um operador único, como os que estão em causa no processo principal, são susceptíveis de ser consideradas justificadas se o Estado‑Membro em causa decidir conceder ou renovar a licença a um operador público, cuja gestão esteja submetida à fiscalização directa do Estado, ou a um operador privado, cujas actividades podem ser objecto de controlo rigoroso por parte dos poderes públicos (v., neste sentido, acórdãos de 21 de Setembro de 1999, Läärä e o., C‑124/97, Colect., p. I‑6067, n.os 40 e 42, e Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International, já referido, n.os 66 e 67).
60. Em semelhantes situações, a concessão ou a renovação a favor de tal operador, à margem de qualquer procedimento de concurso, de direitos exclusivos para a exploração dos jogos de fortuna ou azar não são desproporcionadas à luz dos objectivos prosseguidos pela Wok.
61. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se os titulares de licenças nos Países Baixos relativas à organização de jogos de fortuna ou azar preenchem as condições enunciadas no n.° 59 do presente acórdão.
62. Atendendo às considerações expostas, há que responder à segunda e terceira questões que o artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que o princípio da igualdade de tratamento e o dever de transparência dele resultante são aplicáveis aos procedimentos de concessão e de renovação de licenças a favor de um operador único no domínio dos jogos de fortuna ou azar, desde que não se trate de um operador público cuja gestão esteja submetida à fiscalização directa do Estado ou de um operador privado cujas actividades possam ser objecto de controlo rigoroso por parte dos poderes públicos.
Quanto às despesas
63. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:
1) O artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro, como a em causa no processo principal, que sujeita a organização e a promoção dos jogos de fortuna ou azar a um regime de exclusividade a favor de um único operador e que proíbe que qualquer outro operador, inclusivamente um operador estabelecido noutro Estado‑Membro, proponha, através da Internet, no território do primeiro Estado‑Membro, serviços abrangidos pelo referido regime.
2) O artigo 49.° CE deve ser interpretado no sentido de que o princípio da igualdade de tratamento e o dever de transparência dele resultante são aplicáveis aos procedimentos de concessão e de renovação de licenças a favor de um operador único no domínio dos jogos de fortuna ou azar, desde que não se trate de um operador público cuja gestão esteja submetida à fiscalização directa do Estado ou de um operador privado cujas actividades possam ser objecto de controlo rigoroso por parte dos poderes públicos.
Assinaturas
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(*) Língua do processo: neerlandês.